Márcio Massula Jr.
Todos se esqueceram de avisar a Macanudo que ter a cabeça bombardeada por microondas o dia inteiro faria ela esquentar. E muito. Quando ele estava na Googolplex, isso não acontecia. Mas a Faixa de Anúncios também não ficava ligada o dia inteiro.
O resultado disso era uma película de suor, fina, mas perpétua, ao redor do seu rosto. A solução - paliativa - foi providenciar um estoque de toalhinhas de papel e deixá-las sempre à mão.
Devido à temperatura, a cabeça doía. E a dor de cabeça incessante mexia com seu humor.
Os rendimentos não estavam sendo fantásticos, devido, em parte, ao próprio estado melancólico no qual ele se encontrava. Ele não saía muito, e quando saía, não era um dos interlocutores mais simpáticos da face da terra. E, como diz o ditado, se não sabe sorrir, não abra uma loja. Macanudo tinha se tornado uma celebridade menor na cidade. As pessoas ainda vinham em sua direção, pediam para tirar fotos, experimentar a faixa e todas essas coisas, mas ele não fazia a mínima questão de agradar os clientes, atividade para a qual estava sendo pago, aliás. Ele precisava resolver a questão com Ândrêa.
Ela, por sua vez, continuava tocando sua vidinha trabalho-casa-trabalho. Ândrêa era designer de superfícies queratinosas, uma profissão que já teve um nome menor e um salário maior. Vez ou outra ouvia alguma piadinha de uma das colegas de salão, mas o mau-humor com que recebia os gracejos deixou claro às demais que aquele assunto não tinha nenhuma graça. Pelo menos para ela.
Macanudo tinha passado dos limites. Ela não sabia como tratar aquilo. Realmente não sabia. Quando se conheceram, ela até via um certo charme na obsessão de Macanudo por tecnologia. Um quê de excentricidade que ela não tinha encontrado em outros relacionamentos. Macanudo nunca tinha lhe dado uma jóia ou um buquê de flores. Ao invés disso, nas datas comemorativas, era normal ela ser presenteada com alguma traquitana eletrônica que tinha acabado de chegar nas prateleiras de Xangai, Seul ou Nova Deli e que ninguém além dele mesmo sabia para que servia. No começo era bonito. Romântico. Diferente. Um tempero. Mas aquele implante na testa tinha ido além de todos os limites.
Ela precisava de um tempo e tentou explicar algumas vezes à Macanudo, que continuava se fazendo de desentendido.
Ela acabou com a última cliente da tarde. Teria algum tempo livre, que gastava, invariavelmente, jogando conversa fora com as outras colegas que ainda estavam trabalhando. Ela sentou-se ao lado da porta. Aproveitou para observar o movimento na rua, enquanto o assunto gravita ao redor da websérie mais nova. Algo a ver com baratas inteligentes, mudança de sexo e sorvete. Ândrêa até se entretia com esse tipo de história, mas sua cabeça estava em outro lugar. Era um belo dia e ela tinha vontade de sair do trabalho e dar uma caminhada. Talvez pegar um trem-bala e ir até o estado vizinho, em alguma estância turística. Respirar um pouco de ar puro, comprar algumas bugigangas, esfregar os pés num gramado, essas coisas.
Então ela vê Macanudo parado em frente à porta, como uma estátua. Ele lhe mostra seu smartphone novo. Depois aponta para a maçaneta e gesticula com o indicador, pedindo permissão para entrar.
Como um vampiro. As órbitas de Ândrêa vão de encontro ao teto. Ela inspira e expira. Considera ignorá-lo, mas muda de idéia.
- E aí, Morena?
Mesmo que Ândrêa tivesse um biotipo praticamente eslavo, Macanudo chamava-a assim. No começo, ela pensava que ele queria lhe imputar alguma característica que ela provavelmente não tinha. Depois de algumas sessões de interrogatório, se convenceu da explicação do noivo, que afirmou te escolhido a palavra somente porque foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça quando combinaram de inventar apelidos carinhosos um para o outro.
O sorriso de Macanudo tem algo de sinistro. Ele aparenta estar mais abatido. E há a camada de suor em sua testa.
Ândrêa pensa em elaborar verbalmente o que estava sentindo, mas consegue resumir tudo que estava represando dentro de si numa única palavra, dita, evidentemente, com a linguagem corporal exata.
- Fala...
Macanudo estende seu smartphone em frente ao rosto de Ândrêa. Todas as mulheres dentro do salão passam, dissimuladamente, a prestar atenção na conversa.
- Não sabe o que é isso?
Ela não faz menção de ler a tela.
- Não e nem sei se quero saber. É mais alguma novidade inclusa no maravilhoso contrato que você fez com a Plex?
- Não, Morena! Olha direito!
O Doktor Fritz definia seu estilo como Espiricore. Beta Cândido era o quinto de uma dinastia de vocalistas que tinham em comum os poderes mediúnicos e as vidas curtas. Apesar da reprovação de uma parte significativa da população, o sucesso da banda crescia dia após dia. Beta e os outros antes dele afirmavam que psicografavam as letras das músicas e recebiam espíritos ilustres, desconhecidos e até dos próprios antecessores durante suas performances.
Ver uma apresentação deles era uma experiência única. Eles nunca eram iguais. Nunca. As músicas sempre eram interrompidas pela chegada das entidades, que faziam suas próprias intervenções, fossem homens santos orientais abençoando a platéia, fossem físicos discursando sobre teorias obscuras, fossem donas de casa falando sobre programas de televisão transmitidos cinquenta anos antes. Tudo, nas maioria das vezes, dito, com pronúncia cristalina, em outros idiomas. Independente do que as entidades fizessem (ou não), o público ficava extasiado, procurando sentido naquilo tudo meses depois.
Se tudo era verdade ou apenas um golpe de marketing muito bem perpetrado, ninguém saberia dizer, mas por essas e por outras as entradas para os shows do Doktor Fritz era disputadíssimas, esgotando-se meses antes dos eventos.
Na tela do smartphone de Macanudo estava a mensagem confirmando a compra de duas entradas para o show mais recente deles.
- Nossa, como você conseguiu?
Macanudo exalava auto-confiança.
- Até que não foi tão difícil assim. Claro, tive que mexer meus pauzinhos, mas agora eu sou uma celebridade, cê esqueceu?
O último comentário teve o efeito de uma bateria anti-aérea alvejando a consciência de Ândrêa, que reassume a expressão carrancuda com a qual havia recebido o ex-noivo.
- Pior é que tinha. E tava melhor assim, viu? Olha, Maca, realmente não sei...
Ela cruza os braços e olha para o lado, distante.
- Me dá uma chance, vai - Macanudo suplica.
- Acho que não. A gente já conversou bastante sobre isso. Você fez a sua escolha, e eu fiz a minha. Dá para entender?
- Mas eu já te expliquei! Eu só fiz isso pra gente ter grana para casar logo!
- Maca, o que há de errado em trabalhar para ganhar dinheiro, como uma pessoa normal? Ia demorar? Talvez. Mas a gente ia conseguir. Você não precisava ter feito isso. E podia ter me avisado...
- Ândrêa, cê sabe que eu te amo.
É possível ver que os olhos de Ândrêa ficam molhados. Macanudo fica esperando que a primeira lágrima escorra, para que possa puxar sua ex-noiva para si e dar-lhe um beijo sôfrego, asfixiante, como nas comédias românticas que costumavam assistir. Tudo ia terminar bem.
Ândrêa dá uma fungada, esfrega as mãos nos olhos e diz:
- Tenho que trabalhar, tá?
- Mas...
Ela apenas balança a cabeça, negativamente, esperando que Macanudo se toque e dê o fora dali.
Ele, por sua vez, não consegue pensar em nada melhor para dizer, então:
- Pô, Morena, sabe quanto custaram essas entradas?
- Quase um mês do meu salário.
- Ué! Como você sabe que elas já tão valendo isso?
- Está escrito na sua testa. Tchau...
Ela fecha a porta, vira as costas, e volta ao trabalho.
Ele se segura, mas as lágrimas que deveriam ter escorrido dos olhos da ex-noiva acabam saindo dos seus. Ândrêa desaparece dentro do salão. Algumas das meninas continuam observando-no, de soslaio, mas nenhuma intervém a seu favor. Ninguém vem em seu socorro. Ficar parado ali não vai adiantar nada. Aquela não era a resposta que Macanudo esperava, mas ele tinha um plano B.
Marcio, ótima continuação. Estou ansioso pelos próximos textos envolvendo Monsieur Macanudo :D
ResponderExcluirLegal, Fernando. Valeu por ter lido!
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