Desperto com a campainha do celular. Abro os olhos e logo percebo que as coisas não estão como deveriam.
Uma versão polifônica fuleira da música tema de Missão Impossível martela meus ouvidos. Claro que fui eu quem configurou o telefone daquele jeito. Não sou de ferro. De qualquer maneira, aquilo significa uma coisa. Coisa ruim. Não era normal me ligarem da DP logo de manhãzinha. E se estavam me ligando, era porque o caldo tinha entornado em algum lugar.
"Penso, logo desisto." Meu mantra pessoal. Vi em algum lugar da internet e gostei.
Levanto.
A musiquinha não para.
Vou ao banheiro. Dou uma boa mijada. Escovo os dentes. Desisto de tomar um banho. A musiquinha não para.
Era hora de elaborar o menu do meu desjejum. As opções são café e pão com manteiga, ou café e biscoito com manteiga. Me bate uma preguiça da porra de fazer café. Decido que este será substituído por um delicioso achocolatado genérico de cujo nome não me lembro, sendo acompanhado por biscoito com manteiga. Ótimo. A musiquinha não para. Saco.
Atendo, tentando fazer a voz mais sonífera e irritada que consigo.
É o Hélio. O Hélio é um cara legal. Pária, tipo eu. O pessoal da DP não vai muito com a lata dele, mas o Delegado o respeita.
"Tá acordado, véi?"
"VOCÊ me acordou, véi."
"Sem zoeira, Manga. O delega quer que você venha pra cá. Negócio sério."
"Pra cá onde, meu querido?"
"Cê conhece aquele motelzinho, o Boemia?
"Sei onde é." Não me aguento. "Vai ter suruba aí? Porque eu não tenho coragem de encarar essa sua bundinha magrela. Muito menos a do delega."
"Tomá no seu cú, Manga! Porra, véi, o negócio é SÉRIO mesmo! A gente não tá no motel. Estamos num escritório de contabilidade mais pra frente, na mesma rua. Cê vai ver onde é. A viatura está na frente da casa, e não tem mais nada aqui por perto. Toma seu remedinho e vem, no gás."
"Mas pelo menos fala o que é, cacete!"
"Sabe o Boca Maldita?"
"Claro!"
"Pegamo o cara, Manga. Tamo com ele aqui. E, seguinte: se prepara que a coisa tá feia. Mesmo."
"Tá bom."
"Cê tá com a quadrada aí, né?"
"Sim."
"Bom. Não se esqueça de trazer. E nem de tomar seu remedinho."
"Falou. Daqui a pouco tô aí."
O Hélio não se despediu. Tava tenso. Pudera. Eu também ficaria na companhia de um assassino canibal. Falando nisso, será que o cara tá vivo?
Bem lembrado esse lance do Hélio. Tava mesmo esquecendo de tomar o remédio. Mas, aí é que tá. Será que ele sabia que eu tinha acordado daquele jeito hoje? Ou será que ele falou isso porque eu estou daquele jeito hoje? E o Tostines, por falar nisso?
Antes, desjejum. Depois, diligência.
***
Juro que nunca tinha ouvido falar nessa tal de sépia. Não sabia que era um molusco. Muito menos uma cor. Cor, aliás, que resulta da extração de um pigmento de uma secreção do tal molusco. Fiquei sabendo da dita cuja no consultório do Dr. Júlio. O Dr. Júlio é um cara legal. Não é que nem aqueles psicos lá do departamento. O cara é jovem, pouco mais velho do que eu. Não fica me olhando como se eu fosse um coitado, ou pior, um grandecíssimo filho-da-puta que merece cada segundinho de merda dessa porra toda pela qual está passando. Não. Ele conversa comigo. Pergunta. Cavuca. Igual a um dia desses. Se liga:
"Cê gosta de ler, Antero?"
É, é isso mesmo. Meu nome é Antero Mangabeira Filho. Não ria, por favor. Voltando.
"Ler? Gosto. Gosto sim."
Acho que não fui muito convincente.
"Que livro cê tá lendo agora?"
Claro que eu não queria admitir o meu total desinteresse pela nobre arte da literatura. Como disse antes, o Dr. Júlio acreditava que eu fosse mais do que um brucutu desmiolado, e eu realmente gostaria de fazer jus àquela imagem.
"Agora tô lendo O Segredo. Mas ano passado li O Caçador de Pipas."
"Sei."
"O senhor já leu?"
"Na verdade, nenhum dos dois. Mas já vi o filme d'O Segredo."
Alívio.
"Voltando aos livros, você conhece um autor chamado Philip K. Dick?"
Uma das poucas coisas que eu sabia do inglês era o tal do suck my dick. Será que tinha a ver? De qualquer maneira, preferi guardar essa dúvida pra mim mesmo.
"Acho que sim. O nome não me é estranho."
"Então voltemos aos filmes: Blade Runner. Já viu?"
"Ô se já! Muito louco e tal. Aquela parada lá dos androides."
"Sim. Então, esse filme foi baseado num livro do tal Dick, que é um sobrenome até comum nos Estados Unidos", disse o Dr. Júlio, dando um sorrisinho sacana pra mim, denunciando sua provável telepatia.
"Vi sua cara quando pronunciei a palavra 'Dick'. Achou que fosse putaria, né?"
Casquei o bico.
"É doutor, achei sim. Nunca li esse fulaninho não. Mas gostei do filme. Os livros devem ser legais, acho."
"Bom, para o meu gosto particular, são muito bons. Tem gente que não gosta, claro. Mas opinião é igual bunda, né?"
Esse Dr. Júlio é o cara.
"O Dick escrevia como um louco. Produziu sei lá quantos livros e contos. Também era viciado em anfetaminas. E seu trabalho não foi exatamente reconhecido quando ele ainda estava vivo."
"Sacanagem."
"Pois é. Mas você não sabe da maior..."
"Quê?"
"Durante algumas semanas do ano de 1974, o senhor Dick achou que fosse um romano do século 1 e que a realidade fosse uma grande farsa perpetrada por uma inteligência alienígena chamada VALIS, que, na sua mitologia pessoal, era o nosso equivalente para Deus." Ele faz uma pausa e olhou para mim, dando um risinho safado. "Matrix de cu é rola."
Ri muito. Mas foi questão de segundos pro meu sangue gelar. Comecei a fazer associações.
***
Erro o caminho umas duas vezes, mas chego no motel Boemia. E, como disse o Hélio, mais para frente, na mesma rua, há uma viatura parada em frente a um sobradão com uma placa discreta indicando “Contabilidade-não-sei-das-quantas”, e na sequência, um expediente de todos os serviços prestados pelos caras. Eram muitos. Nenhum repórter à vista. Estranho. Ou não. Continuo vendo as coisas de outra maneira. Paro o carro e entro. Sai o Dogrão, pistola na mão. Acho que ele vai atirar em mim. Tá com os olhos vidrados. Levanto as mãos em sinal de rendição e forço um sorriso. Ele não acha graça, mas abaixa a arma assim mesmo. Pensando bem, o Dogrão nunca foi com a minha lata, nem eu com a dele. Ótima oportunidade de dar um fim na nossa inimizade. Mas, pode ser impressão minha, não pode?
Acho que ainda não te expliquei: em alguns momentos vejo as coisas em tons de sépia. Daí meu interesse pela cor.
Mas, há um porém: visão em tons de sépia significa visões de coisas que só existem na minha cabeça. Basicamente, vejo pessoas que não estão lá (ou aqui, ou aí, tanto faz). Começou algum tempo atrás, depois de um serviço que deu muito errado. Às vezes, porém, o negócio foge do controle e fico pirando em outras imagens, tipo gatos falantes, fantasmas, dinossauros-robôs, e, certa vez, uma vagina dentada. Entre outras coisas. Segundo o Dr. Júlio, isso tem a ver com a minha depressão e um tal de contraste retinal. Sei lá.
Claro que no começo eu me cagava nas calças e até tive que ficar afastado do trabalho. O psiquiatra do departamento queria me aposentar, na verdade. Mas dei um jeito. Encontrei o Dr. Júlio, terapeuta alternativo, recomendado por muita gente lá na DP. O psiquiatra da DP ficou puto e tal, mas parece que o Dr. Júlio era respeitado por aí e ele não se metia nos diagnósticos do cara. Dr. Júlio liberava, tava liberado.
***
"Hoje em dia, o tipo de história que Dick escrevia é chamada de ficção paranóide, ou paranóica, que neste caso em especial soa melhor, na minha opinião."
"E?"
"Bom, você nunca leu, então acho que agora não seria o momento de cairmos em digressões existencialistas. Mas, bem, basta saber que, para Dick - assim como para muitas outras pessoas antes e depois dele - a realidade é uma grande ilusão."
***
A questão é que, normalmente, esses meus delírios duram alguns minutos, saca? Claro, no começo eu ficava mal o resto do dia, dias até. Mas, depois me acostumei. E sempre tinha a mudança das cores para me avisar. Demorei pra me ligar nisso, é verdade, e, nem sempre, a visão em tons de sépia trazia alguma bizarrice. Às vezes, bom, eu só via as coisas num tom diferente. Mas isso acontecia numa frequência menor. De qualquer jeito, eu tou com aquela película imaginária (foi disso que o Dr. Júlio chamou) na minha cabeça desde que acordei. Não me lembro de ter ficado tanto tempo assim. Mas também não vi o Godzilla cagando na casa do vizinho, nem começaram a sair borboletas do escapamento do meu carro, então beleza.
O Delegado aparece de algum lugar. Me chama num canto.
"Manga, desculpa ter te chamado agora. Sei que você está afastado desse tipo de serviço, mas eu preciso de gente de confiança aqui, e você sabe que, apesar dos pesares, sempre confiei em você, né?"
"Sei." Finjo que acredito.
"É o seguinte, Manga. A gente pegou um carinha aí e eu tenho certeza de que é o Boca Maldita. Não vou ficar perdendo tempo entrando em detalhes agora. Estou esperando o pessoal da perícia chegar. Os jornalistas ainda não sabem. Espero que não descubram. Por isso só tamos nós aqui. Daqui a pouco devem chegar os outros funcionários, e aí não vai ter jeito, vão dar com a língua nos dentes e vai ter um monte de repórter aqui. Mas eu quero atrasar isso o máximo possível, por isso estou contando com você e uma equipe escolhida a dedo, certo?"
"Certo" Atuo, novamente.
"O Douglas está aí na porta, o Bidú está nos fundos e o Hélio está lá em cima, vigiando o suspeito. Quero que você troque de lugar com ele, até os peritos e o resto do pessoal chegar, pode ser?"
"Ficar lá em cima com o suspeito?"
"É. Você trouxe sua arma?"
"Trouxe, sim senhor. Mas, doutor, eu vou ficar lá em cima, sozinho com o sujeito?"
"Suspeito, Manga. E sim, você vai ficar sozinho com ele, por um tempo."
Eu sei a diferença entre sujeito e suspeito, mas não me dou ao trabalho de explicar ao Delegado, que se liga no motivo da minha relutância.
"Pode ficar tranquilo, Manga. O suspeito está algemado e devidamente contido. É só tomar conta mesmo, pra ele não tentar nenhuma bobagem, entende?"
"Mas, afinal de contas, o que ele fez aqui?"
"Jura que você não reparou?" O Delegado aponta pro chão. Várias pegadas num líquido escuro, cuja cor não consigo discernir porque, você sabe, estou vendo tudo em tons de sépia. Mas o cheiro não deixa dúvidas. É sangue. Dou uma filmada no ambiente. Sobre o balcão, nas paredes, na escadinha. Sangue por todo o lado. E pegadas. Algumas do nosso pessoal, com certeza.
***
Subo as escadas. Há apenas uma porta aberta. Vejo o Hélio, empunhando aquela Glock que ele catou de um traficante, no ano passado. Pra ele estar portando uma arma fria na presença do Delegado, é porque o negócio tá feio mesmo. Ele está visivelmente nervoso. Pela fresta vejo a perna cabeluda de um homem sentado numa cadeira. O Hélio me vê. Faz um sinal com a mão pra eu não entrar no quarto. Vira para o sujeito e diz "Na manha aí, hein, cumpadre. Se você se mexer, te pipoco inteiro." O homem não responde. O Hélio sai, fecha a porta mais um pouco, deixando apenas uma fresta, por onde pode continuar vigiando o suspeito. Continua empunhando sua arma. Ainda tá nervosão.
"Bom que cê chegou, Manga." Hélio fala baixo. Quase sussurrando.
"E aí, é o cara mesmo?" O cheiro do sangue fica cada vez mais forte.
"Acho que é sim, cara. Tem um cigarro aí?"
"Parei de fumar, né, Hélio!"
"Foi mal. Olha cara, quero que você saiba que não foi ideia minha te chamar pra cá não, hein? Foi o delegado que ficou insistindo e tal."
"Não esquenta, velho. É meu trabalho também, não é?"
"É, mas não sei se cê já tá preparado pra ficar vendo essas paradas..."
"Porra, Hélio. Já tô me tratando! Tô bem, pode confiar. E parece que o fita aí dentro já tá de algema, né?"
"Tá, mas, olha, o cara é meio sinistro, saca? Fica falando umas paradas meio loucas. Tava meio que mexendo com a minha cabeça. Se a gente ficasse sozinho mais cinco minutos, atirava nele. Ou em mim mesmo."
Como dizem na DP, 'só não me cago porque não tenho bosta pronta'.
"Olha, não te falei isso pra te deixar noiado não, hein? O cara tá preso mesmo e tal. Mas se liga, hein, Manga? Não fica dando muita ideia pro sujeito, certo? Por mim, a gente ficava aqui fora, e ele lá dentro. Mas o Delegado quer alguém com ele o tempo todo." Ele termina de falar e dá mais uma espiada dentro do quarto. Depois diz ao homem lá dentro "Tô de olho, hein, figura?"
"Como cês pegaram ele?", pergunto.
"Cara, cê nem vai acreditar. A gente tava numa diligência ali pros lados daquele bairro depois da BR, como é mesmo o nome?"
"Jatobá?"
"É isso aí. Então a gente ia grampear um sujeitinho aí. Crime de colarinho branco, essas paradas..."
Isso explica a presença do Delegado, que não é exatamente um homem de ação, penso comigo.
"Aí, a gente tava passando aqui na frente, e me sai uma mulher toda extropiada de dentro dessa birosca. Feio, cara. Muito feio. Nem sei como a bicha ainda tava viva. O cara arrancou uma mão dela. Tava que nem aqueles filmes de terror, esguichando sangue e tudo. O Dogrão tava no volante. Freiou na hora, abriu a porta e foi na direção da mulher, mas ficou meio sem saber o que fazer. E a coitadinha se arrastando como podia, tentando falar alguma coisa. Não deu pra entender. Ela tava falando muito baixo."
Hélio faz uma pausa para respirar e dar mais uma olhada dentro do quarto. Depois olha para a escada e diminui o tom de voz.
"O Delegado, claro, nem fez sinal de tirar o cinto de segurança. Aí eu e o Bidú abrimos as portas também. Peguei uma blusa que tava no banco de trás e fui lá, não sei, tentar estancar o sangue da bichinha. Daí a gente olha pro lado e tava o fita aí, pelado, todo ensanguentado, segurando um puta dum facão, cê acredita?"
Faço que sim com a cabeça. Hélio está recuperando sua animação normal.
"Então, a gente fica ali, meio sem saber o que fazer. O Delegado congelado dentro do carro. O Dogrão rodando, com as mãos na cabeça, que nem uma barata tonta. Eu e o Bidú tentando amarrar o cotoco da mulher, que ficava se agarrando na gente e emplastando tudo de sangue. E cê sabe o que esse filha da puta aí fez?"
Faço que não com a cabeça.
"Riu e veio pra cima, vê se pode? Aí o Delegado resolveu fazer alguma coisa. Gritou lá da viatura: 'Atira nele, porra!'" Hélio começa a dar uma risadinha. "Aí saí daquele transe, peguei a Glocona e mandei ver. Cê precisa ver como o sorrisinho saiu do rosto dele. E mais: acertei o primeiro tiro no facão, acredita? Fez até um barulhinho, tipo nos filmes mesmo. Nem tava mirando lá, mas, nessas situações, qualquer coisa é lucro, né? Aí o putinho se vira, pra fugir. Dou outro tiro e esse pega de raspão na bundona branca dele. Aí ele dá um gritinho e para. Aí eu grito 'Pára féladaputa, porque o próximo vai ser pra matar!' Cê acredita, Manga? Eu lá, me cagando de medo, e consigo soltar isso. Aí ele parou mesmo. Deve ter ficado impressionado com o lance do facão e tal. Aí a gente trouxe ele aqui pra dentro. Tinha que ver na hora de algemar o cara. Ninguém queria fazer isso."
"Mas alguém fez, né?"
"É. E não fui eu. Já tinha acertado o cara e tava com crédito. O Bidú também, que tinha ficado ajudando a mulher. Sobrou pro Dogrão, que não tinha feito nada. Com o delegado é que a gente não ia falar, né?"
"E a mulher?"
"Que mulher?"
"A da mão decepada, pô!"
"Putz, é mesmo. Morreu, a coitada."
"E onde ela está?"
"Lá atrás. Ela até que aguentou vir andando aqui pra dentro, mas se sentou, suspirou e virou os olhos. Fiquei com a maior dó."
"E agora?"
"Agora eu vou ali dar uma fumada, que tô muito tenso. Você entra, faz cara feia pro féladaputa e tenta não olhar pro corpo, certo?"
"Corpo?"
"É, esqueci de comentar. Todos os cômodos aqui tem corpos. Como esse aqui tinha menos, resolvemos deixar o fita aí dentro."
Eu devo estar muito expressivo hoje, porque Hélio também lê minha cara.
"Eu cobri o corpo. É só você tentar não olhar muito e vai parecer que ele não está lá. Eu fiz isso e deu certo. E vai ser por pouco tempo. Agora vai lá que daqui a pouco o Delegado vê a gente aqui de conversa e planta a mandioca nas nossas bundas. Vou lá dar um tapa e já volto. Aí, ficamos nós dois, belê?"
"Belê.", digo, dando o sorriso mais falso da cidade.
"Fica com a chave das algemas..."
"Pra quê eu vou querer isso?"
"Sei lá. Fica com elas aí. Vou lá e já volto."
Pego a chave. Hélio saca um cigarro do maço e acende."Ô Hélio, cê me pede um cigarro com um maço no bolso?"
"Manga, tô tão nervoso que já tinha até me esquecido disso."
Ele vai descendo as escadas. Já eu, destravo e engatilho o cano, respiro fundo e entro no cômodo.
***
É claro que olho primeiro para o corpo, porcamente coberto com pedaços de jornal, documentos, e mais uma outra papelada que o Hélio arrumou sei lá como. Na verdade, ele se preocupou em esconder o rosto da vítima, uma mulher, mas o jornal empapado de sangue torna tudo mais horripilante. E, porra, que cheiro! A janela já está aberta. O Boca dá uma tossida artificial, querendo, evidentemente, ser notado. Na cabeça desses caras eles são os verdadeiros artistas, e não suportam sair da luz dos holofotes. Li isso em algum lugar. Ele tá pelado e algemado numa dessas cadeiras fuleiras de escritório, com rodinhas. Dá pra ver que bunda dele ainda vaza sangue, provavelmente absorvido pela espuma do assento da cadeira. Já vi mais sangue nessa manhã do que na minha vida inteira.
"Dia."
Era só essa que me faltava. Serial killer educado. Olho pra ele, tentando fazer a cara mais maligna que consigo. Seguro meu cano na mão, ignorando completamente essa viadagem de ficar com o dedo no guarda-mato. Meto ele no gatilho, preparado para o que der e vier, inclusive um tiro no próprio pé.
"Cala a boca."
Ele abaixa a cabeça. Ótimo. Então, no meio daquela loucura toda - entenda isso como quiser - me ocorre algo: estou vendo as coisas em tons de sépia até agora porque não tomei meu remédio. Só pode. O telefonema do Hélio, a quebra na rotina, a alegria inadmissível de ir pra rua novamente. Sim, depois de tantos dias, me esqueci. Mas, e agora? Não quero que esse fita me veja tomando isso. Mas, se eu sair daqui, os outros podem ver, e não quero que tirem conclusões precipitadas, sejam elas quais forem. Fora que esse zé-ruela pode fugir. Ele está me olhando.
"Abaixa essa porra dessa cabeça, rapá! Não gosto de vagabundo me encarando não!"
Ele continua me olhando. Dá um sorrisinho maquiavélico. Que me gela a espinha. Então entro na dança. Me agacho em frente a ele e sussurro.
"Olha, eu posso te meter um balaço no meio da testa, digo que foi legítima defesa, e depois dessa sua festinha aqui, ninguém vai ligar, certo?"
O filho-da-puta continua me encarando.
"E, se você morrer agora, não vai ter chance de estrelar seu showzinho, tá ligado?"
Funciona. Ele fica sério e faz o que mandei. Me levanto, viro de costas, saco as duas cápsulas do frasco que sempre está no bolso da minha jaqueta, e engulo as duas de uma vez. A seco é meio foda. Mas, é isso aí. Melhor do que nada. Daqui a pouco tudo volta ao normal.
***
"Cê se trata com o Dr. Júlio, né?"
Não consigo esconder minha curiosidade.
"Como?"
"Deu pra ver essas cápsulas que você engoliu. Vi pela cor delas. Só tem uma farmácia de manipulação na cidade que faz cápsulas dessa cor. E o Dr. Júlio deve ser um dos poucos médicos que manda fazer remédios lá."
"Ah é, malandrão? E o que eu estou tomando, então?"
"Uma mistura de passiflora, gelatina, garcínia, alcachofra e colágeno."
Já que fodeu tudo mesmo, perco a vergonha, tiro o frasco do bolso e confiro a fórmula. Ele está certo. Olho para ele e está lá o sorrisinho cínico que já aprendi a odiar nesses poucos minutos de convivência.
"Tá, e daí?"
"Isso é remédio de gordo."
"Tomá no seu cu!"
"Sério mesmo. Fiquei um tempão tomando essa porra. Aliás, se eu tivesse tomado um medicamento psiquiátrico decente, talvez isso aqui não tivesse acontecido, né?", e então ele faz um gesto com a cabeça, se referindo ao corpo no chão.
"Agora a culpa é do médico, né? É sempre assim: a culpa é dos outros...", a última frase é mais para mim do que para ele. E onde está o pessoal que não volta?
"Pior é que é mesmo. Não do médico. Dos médicos. Se algum dos tantos pelos quais passei durante toda a vida tivesse me dado um pouco de atenção e me diagnosticado corretamente, talvez, repito, isso não tivesse acontecido."
Ele está algemado, nu e vazando sangue. Eu estou livre, armado e a uma distância segura. E ainda estou me cagando de medo desse cara. Ele não parece dar a mínima para o fato de estarmos numa salinha que tem cheiro de matadouro, acompanhados pelo corpo mutilado de um mulher. Nessas horas agradeço pela minha rinite, que entupiu meu nariz assim que acordei, o que ameniza um pouco as coisas. Quero sair logo daqui.
"Qual é a sua cor?"
Porra!
"Como assim?"
"A cor, ué! Cê não fica vendo as coisas numa cor diferente. Numa 'película imaginária'? Eu via as coisas, veja só você, em vermelho."
"Cara, me dá um bom motivo pra não te estourar os cornos agora mesmo...", minha cabeça começa a doer.
"Bom, pra começar, você não parece ser um tipo muito violento. E, pelo jeito que está segurando essa pistola, só atirou poucas vezes na vida."
"Dessa distância, e na situação na qual você está, acho que não preciso ser muito habilidoso, né?"
"É, não precisa mesmo. Mas, olha só: você tá curiosão, né? Deve estar pensando assim, 'nossa, como ele sabe isso tudo sobre mim?', e, no fundo, quer ouvir o que eu tenho a dizer, pelo menos até seus camaradas chegarem pra me levar. Porque aí, já era."
"Tá bom, pode começar."
***
"Cara, esses seus camaradas te acham um puta de um pirado."
"Me diga uma coisa que eu não sei."
"Sério mesmo. Por que você acha que te chamaram?"
"Isso eu sei.'
"Ah, é? Então tá..."
O bicho era mais esperto do que aparentava, mesmo.
"Mas, e aí, como você me conhece tanto, afinal de contas?"
Jesus, como o Hélio está demorando.
"Pausa.", digo, tentando aparentar que tenho a situação sobre o mais completo controle. Com um medo irracional de que ele realmente saiba alguma coisa, resolvo sair do cômodo e verificar onde o pessoal está.
Grito o nome do Hélio, e quem responde é o Bidú. Eles já vão subir, os putos.
Volto.
"Que é que foi? Não gostou da companhia?"
"Na verdade, não."
"Vem cá: cê não acha que tem nada estranho por aqui não?"
"Como?"
"Sei lá. Ninguém parece ter visto esse massacre. Os repórteres não chegaram. E as coisas devem estar meio confusas aí na sua cabeça também, né? Dá pra ver daqui. Eu sinto isso."
"Tá bom, malandrão, me diz então o que você está sentindo."
"Estou sentindo que você está com sérias dúvidas sobre a veracidade do que se passa à frente do seu nariz. Estou sentindo que sua cabeça dói só de olhar para mim e também estou sentindo que você começa a considerar a hipótese de que eu seja o mais puro fruto da sua imaginação."
Começo a tremer.
"Ah, e estou sentindo que você está se cagando de medo."
"Olha...", agora que as palavras começaram a me faltar, a merda tá feita de verdade.
"Olhe você. Porque não tira suas dúvidas? Vamos lá! Vamos fazer um teste. Você descobre esse cadáver aí ao seu lado. Se embaixo desse bolo de jornal e sangue tiver o rosto detonado de uma balzacona que até dava pro gasto, bem, estamos no mundo real. Mas, e se tiver outra coisa? Pode ser, não pode? Então, se tiver outra coisa, estamos num belo de um pesadelo dentro dessa sua cabeçona aí."
"Mas, que coisa?"
"Sei lá, o pirado aqui é você."
"E você é o quê?"
"Eu conheço muito bem meus motivos, e não acho nada demais nessa cena."
"Tudo bem, e se for mesmo um pesadelo, ou um delírio."
"Sei lá, cara! Quem se trata com um psiquiatra aqui é você, esqueceu? O que ele já te disse sobre isso?"
"Que eu devo observar e memorizar."
"Só?"
"Só."
"Mas ele não falou nada sobre enfrentar os medos, coisa e tal?"
"Se falou, não me lembro."
"Então, tá."
"Beleza."
"Mas, você vai olhar a mulher ou não?"
"Não, não vou. Não gosto de sangue."
"Ah, meu deus..."
"Ficou triste que não caí na sua?"
"Mais ou menos..."
"Cê lá ví!"
"C'est la vie. E cê precisa praticar um pouco a pronúncia. Mas pelo menos sabe o que isso significa?"
"Claro que sei."
"Tive outra ideia."
"Acho que cê devia estar pensando em um jeito de não virar mulher na cadeia."
"Não dá pra acreditar que você é da polícia, sabe? Caras como eu não viram mulher na cadeia."
"Vai achando. Tem nego lá dentro que é chegado numa experiência mais exótica."
"O deles tá guardado."
"E o meu?"
"Eu bem que gostaria de te dar umas lições de anatomia. Mas, se você não percebeu, estou sofrendo uma baita duma hemorragia bem aqui na sua frente. Daqui a pouco no chão vai ter mais sangue meu do que desse povo que eu matei. E daí minha ideia."
"Fala então. Já que resolveram me deixar aqui por sua conta mesmo, sou todo ouvidos."
"Me solta."
Sinto uma descarga elétrica na base da espinha, seguida de um grande alívio. Começo a gargalhar. De verdade. Ele também dá umas risadinhas que eu achei bem malignas, mas, como ele mesmo observou, daqui a pouco estaria desmaiado por causa do sangue que está perdendo.
"Tá bom, eu solto."
"Sério?", seus olhos brilham, e tenho a impressão que a máscara de predador caiu por alguns momentos.
"Claro que não, né?"
"Eu devia esperar isso de você."
"Devia mesmo."
"Raso, plano, cagão..."
"São..."
"Covardão..."
"Seu cuzão..."
Ele ri. De novo. Eu também. Afinal, o que poderia dar errado?
"Então me dá um cigarro."
"Lá na delegacia eles te arrumam um."
Tento fazer que não estou nem aí girando na ponta dos calcanhares, o que faz com que eu encoste no cadáver da mulher, o que, por sua vez, me trouxe de volta à realidade. Sinto meu café da manhã se revolvendo em meu estômago. Porra, os caras devem estar de sacanagem, só pode.
***
"Bom, seu caso é grave, mas tem solução."
Ainda não sabia se devia ficar aliviado ou tenso com a declaração do Dr. Júlio.
"Se você chegou até aqui, deve saber que minha abordagem é um pouco diferente, não é, Mangabeira."
"Pois é, Dr."
"Pois é. Se você fosse acatar a decisão do Dr. César, provavelmente estaria de licença por tempo indeterminado, ou mesmo aposentado. Mas eu vou te receitar um medicamento e pedir que você seja transferido. Pode ser?"
Aquilo me pegou de surpresa. Se por um lado eu continuaria na polícia, por outro significava que provavelmente eu iria passar o resto dos meus dias tomando medicamento controlado, trabalhando em algum postinho, tirando impressões digitais de idosos analfabetos. Fora o fato de virar motivo de chacota pra Deus e o mundo.
"É, pode sim."
Na vida devemos correr alguns riscos.
"Bom, vi que a perspectiva não te animou muito, mas, veja por outro lado. Os índices de depressão entre policiais afastados é muito alto..."
"Mas, eu já não estou deprimido?"
"Está. Mas sua reintegração, junto com meus medicamentos, vão dirimir e, com um pouco de paciência e força de vontade, acabar com essa sua depressão e com os efeitos associados a ela. Vai por mim, funcionou com seus colegas. Vai funcionar com você também."
Se 'funcionar' significa deixar um bando de lunáticos continuar andando armado pela cidade, a serviço da lei, então, ok, funciona mesmo.
***
Então vejo uma cobra preta, lisa e oleosa sair debaixo de uma das folhas de jornal que cobrem o cadáver da mulher. Não havia como aquele bicho estar ali antes. Dou um pulo. Boca se liga.
"Olha a cobra!"
"Cê viu?"
"Claro que vi."
Então olho pra ele e vejo que de sua testa brotam dois chifres caprinos enormes.
"Que porra é essa na sua testa?"
"Aí eu não sei. Talvez já estivesse aí desde sempre."
Sinto náusea e tontura. Não posso desmaiar.
A pele de boca começa a ficar vermelha, o conjunto ficando cada vez mais parecido com o bom e velho Satanás ao qual estamos tão acostumados.
"Me solta, porra!"
As paredes ficam líquidas.
"Vai viadinho!"
Boca está em forma humana de novo, mas seus olhos... tem algo errado com seus olhos. As pálpebras estão invertidas, paralelas ao eixo do nariz.
"Vamo logo! Não tem a manha não?"
Ouço as batidas do meu coração. Altas. Ensurdecedoras.
"Não tenho o dia todo. Daqui a pouco seus amigos vão voltar..."
O cadáver da mulher ergue uma das mãos e aponta o indicador para o Boca. As batidas aceleram. Não vou aguentar. Então arrisco.
***
Sempre fiz o possível e o impossível para fugir de diligências e qualquer outro serviço que fosse potencialmente perigoso. Embora não gostasse de ficar atrás de uma mesa, também não era muito chegado em enfrentar bandido. Mas aí o delegado mandou a gente ir numa quebrada, prender um cidadão. E nós fomos lá. E o cara fugiu. E a gente foi atrás dele. E nos separamos. E, do nada, me aparece um moleque com uma arma não mão. E eu abri fogo. E a arma era de brinquedo. Ele tava brincando de polícia-e-ladrão.
Aquilo acabou comigo, em todos os sentidos que você possa imaginar. E nem falo do dia em que tive que encarar a mãe dele, que, por falar nisso, me jogou uma praga.
Então vieram os repórteres, e a Corregedoria, e mais um monte de gente. Minha defesa alegou que eu confundi a arma de brinquedo com uma de verdade, e que agi em legítima defesa. Escapei de ser preso, e o resto você já sabe.
Mas, lembra que eu disse que as visões começaram depois de um serviço que deu muito errado? Mentira. Foi a história que eu contei pros meus colegas, pro Delegado, pra Corregedoria e pro Dr. Júlio.
Elas começaram antes. Não confundi a arma do moleque. Era um negócio plástico, amarelo e laranja, enorme, e nem de longe aparentava ser alguma coisa que pudesse matar alguém. Mas aqueles tentáculos saindo do rosto dele, caaaara, que coisa medonha! Aí eu tive que meter bala, né?
***
A essa altura do campeonato, é mais do que evidente o fato de eu, finalmente, estar pirando. Tenho sérias dúvidas se isso aqui não é só mais uma peça sem graça que minha mente insiste em me pregar. Antes eu tinha medo das visões. Depois passei a, na medida do possível, ignorá-las. Mas o fato é que nunca tinha interagido com nenhuma delas. Então algo estala em minha cabeça. Talvez fosse a hora. Passo a ter a impressão de que está tudo ligado às algemas do Boca. A situação é irreal demais para ser verdade. Tenho que soltá-lo. Mostrar que estou no controle da situação. E então ele me libertará.
Me aproximo. Ele, hora satânico, hora humano, se contorce de alegria na cadeira de escritório. A medida em que me aproximo, ele sibila, recita versinhos que não entendo. Mas quando me posiciono atrás dele, fica quieto, concentrado. Destravo as algemas. Ele está sereno. Não parece o animal que até agora há pouco me fez cagar nas calças. Acho que estou no caminho certo. Então me dirige o olhar. Me dá uma piscadela de cumplicidade. Retribuo com um sorriso. Então tomo uma cabeçada no pau do nariz.
***
Ele me nocauteia instantaneamente. Os ferimentos doem demais para serem fruto da minha imaginação. Ele sai do recinto, correndo, gargalhando. Estou deitado no chão, prestes a ficar inconsciente. Antes do meus olhos se fecharem definitivamente, ouço gritos. Tiros. Alimento a esperança de acordar e não ver nada em tons de sépia. Descobrir que tudo foi um delírio, um pesadelo. Mas sinto meu sangue escorrendo. Sinto a dor do meu rosto detonado. Vai saber o que se passou na minha cabeça. Mas ainda tenho um pouco de esperança. Esperança de que ele não volte aqui para terminar o serviço.
FINIS
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