Márcio Massula Jr.
O curso de Engenharia da Administração era relativamente novo. Visava "preparar profissionais para o futuro, aguçando-lhes a visão e as faculdades mentais para que, de maneira inovadora, atuassem na resolução de problemas, ou melhor, na Engenharia de soluções, Administrando assim, de maneira vanguardista, o capital e os recursos humanos". Ou pelo menos era o que estava escrito no panfleto, que, diga-se de passagem, deve ter surtido efeito, visto que as primeiras turmas foram concorridíssimas.
Nada a ver com os preços também "competitivos" da universidade, em média 80% mais barata que as outras. Francisco foi um dos primeiros a se inscrever, e por isso mesmo conseguiu se formar antes que o Ministério da Educação fechasse a escola, abolindo de uma vez por todas o tal curso de vanguarda. Um curso não reconhecido pelo MEC era uma mancha indelével no currículo, mas Francisco tratou de abastecer o seu com muitos cursos oblíquos, seminários, palestras, pós-graduações relâmpago e MBAs tropicais, criando assim uma verdadeira cortina de fumaça letiva ao redor das suas qualificações superiores, artifício muito eficiente na hora de confundir entrevistadores.
De qualquer maneira, após percorrer boa parte da estrada trilhada por todos os jovens sonhadores recém-formados, ele conseguiu um bom emprego numa empresa multinacional, o que, no frigir dos ovos, não lhe deixava menos tenso, já que sua farsa poderia vir à tona a qualquer momento.
E pra piorar tudo, aquele seria o dia da reunião, o dia que daria início à ascensão meteórica de Francisco - se tudo desse certo.
A Backspace Componentes Automotivos era pioneira no seu ramo. Fabricava uma gama imensa daqueles componentes obscuros sobre os quais mesmo os mecânicos mais experientes pouco sabem.
Insonorizantes laterais, suportes refratários, parafusos de ajuste helicoidais bipartidos, coxins sazonais, etc. A Backspace também mantinha um curioso recorde, que foi tema de revistas corporativas várias vezes: havia mais de dois anos que nenhuma sugestão do Programa de Geração de Idéias era aprovada.
Como todos os outros milhares de programas deste tipo, o da Backspace promovia a premiação dos funcionários em dinheiro, em valores que variavam conforme a economia proporcionada pela sugestão.
Mas o nível de excelência era tão alto que praticamente todas as boas possibilidades haviam se esgotado. Era uma empresa perfeita, tanto em termos de qualidade do produto como do desempenho.
A Backspace era tão metódica e obcecada com a performance de seus produtos que criou uma seção, a PESQUISAS AVANÇADAS, apenas para colher dados precisos a respeito do impacto dos seus produtos nos usuários finais. Não era estranho encontrar relatórios que falavam sobre a "os efeitos da deflexão de radiação UV solar nos puxadores dos isqueiros, em dias ensolarados, no globo ocular humano", ou ainda "parâmetros otimizados para escolha de texturas conforme amostragem realizada no baixo Jequitinhonha". Francisco, embora não trabalhasse lá, tinha certo apreço pelo trabalho daqueles homens e procurava se manter informado sobre os rumos e as novas descobertas da PESQUISAS AVANÇADAS. E um daqueles documentos lhe chamou a atenção certo dia. Falava sobre um ruído provocado por uma guarnição de plástico que era montada entre o acoplamento da transmissão de certos veículos populares. O tal ruído, provocado pelo atrito entre o plástico e os metais, era imperceptível ao ouvido humano, contudo transformava-se num verdadeiro tormento quando era ouvido pelos cães ou pelos infelizes portadores da síndrome de Lynn-Miller.
Essa doença, que durante muitos anos foi confundida com o mal de Frank-Varley e depois com a DPAC, era uma típica cria do século XXI. Não havia estudos sólidos até aquele momento - sendo que a doença em si tinha sido descoberta poucos anos atrás - mas as principais correntes apregoavam que aquela era apenas a ponta do iceberg, apenas a primeira de muitas doenças estranhas surgidas em tempos de poluição eletromagnética, efeito estufa, excesso de informação, comida gordurosa, abduções, sexo seguro e cerveja sem álcool. Os portadores dessa síndrome - em sua grande maioria jovens na casa dos vinte - nasciam com o ouvido interno hipertrofiado, podendo ouvir sons emitidos numa frequência muito maior do que os usuais 20 Khz captados por um ouvido humano normal, o que significava dizer que sua audição poderia chegar perto da de um cão. O problema era que o cortéx auditivo dessas pessoas não vinha preparado com os milhões de receptores neurais extras que seriam necessários para que essa nova gama de sons pudesse ser interpretada de maneira satisfatória. Ruídos em frequência ultra-sônica, para essas pessoas, era o mesmo que, nas palavras de um portador, "ter a cabeça atravessada por uma agulha de tricô".
Até o momento, não tinha chegado à PESQUISAS AVANÇADAS nenhuma notícia de reclamações de clientes (tanto as montadoras para as quais a Backspace fornecia quanto os clientes finais) referentes a tal guarnição. Mas existia um estudo que afirmava que a população de portadores da Lynn-Miller duplicaria num espaço de cinco anos, e as projeções mais otimistas mostravam um número seis vezes maior nos dez anos subsequentes. Foram aquelas histórias que comoveram Francisco, e seria uma pequena mas significativa melhoria na qualidade de vida daquelas pessoas o seu estandarte, o núcleo do projeto no qual ficaria imerso nos próximos seis meses da sua vida. E se alguém lhe dissesse que a Lynn-Miller ocorria em apenas uma entre quinze milhões de pessoas, ele delicadamente diria "foda-se".
Mas não com essas palavras.
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