quinta-feira, 29 de abril de 2010

PANEL ONE

A principal influência para isso aqui (se é que alguém ainda se lembra) foi o livro PANEL ONE: Comic Book Scripts by Top Writers.

Dia desses tava de bobeira em casa, reencontrei o bicho na estante e comecei a folheá-lo. De lá pra cá, acabei relendo quase tudo.

PANEL ONE é uma coletânea composta por nove roteiros, ora comentados pelos autores, ora pelo editor do livro, Nat Gertler (que, por sinal, também possui um roteiro lá).

Não é um livro que vá mudar sua vida. E os roteiros não incluem nenhum grande clássico, mas quando li da primeira vez, deu uns insights. E a releitura recente deixou tudo mais legal.

É um trabalho interessante porque evidencia as pequenas idiossincrasias que todo roteirista tem. Embora seja relativamente fácil encontrar roteiros de hq na internet, o fato do livro trazer vários deles juntos e contextualizados tem suas vantagens.

Apenas um dos autores - Gaiman - não é americano. Mesmo assim, fez sucesso escrevendo comics. Então, obviamente, há alguns pontos de tangência, e o livro pode não ser tão plural quanto alguns gostariam. De qualquer maneira, continua sendo uma leitura mais do que válida pra quem se interessa pelo assunto

Sem mais delongas, os roteiros:

Neil Gaiman - MIRACLEMAN 17

O roteiro é bem classicão, do tipo fullscript.

Naquela época, final da década de 1980, Gaiman era mais prolixo e, talvez indo um pouco no vácuo do escritor que o antecedeu - ninguém mais, ninguém menos do que o nosso bom e velho Maconheiro Mágicko de Northampton - se perdia em detalhes que, a julgar pela minha leitura de roteiros (nem tão) mais recentes, talvez ache irrelevantes hoje em dia.

O que me impressionou foi que ele tinha o PÉSSIMO HÁBITO DE ESCREVER AS DESCRIÇÕES DO PAINEL EM CAIXA ALTA, O QUE, CONSEQUENTEMENTE, DEIXA A MAIORIA DO ROTEIRO EM CAIXA ALTA, O QUE, POR SUA VEZ, TORNA A LEITURA INCÔMODA. Os diálogos e recordatórios foram poupados dessa barbaridade tipográfica, graças aos deuses.

Sempre achei isso meio esquisito, por que para mim tinha que ser justamente o contrário. Descrição de painel com maiúsculas E minúsculas, enquanto recordatórios e diálogos -  que vão ser copiados e colados na página desenhada - somente em MAIÚSCULAS. Isso, aliás, costuma ser o padrão de letreiramento.

Em alguma das encarnações anteriores do site do Warren Ellis, ele comenta algo sobre o fato de que escrever os diálogos e recordatórios em caixa alta ajudava a ter uma noção de como aquilo ia ficar na página finalizada.

De qualquer forma, na época em que esse roteiro foi entregue, provavelmente as hqs ainda eram letreiradas manualmente. Então pra que se preocupar em facilitar a vida do letrista com o Ctrl+C,Crtl+V?

Essa hq é bacana, e foi desenhada por Mark Buckingham.

Marv Wolfman - THE MAN CALLED A-X 5 (volume 2)

Confesso que antes de ter lido esse livro, nunca tinha ouvido falar nesse título.

Esse roteiro foi escrito por Wolfman no estilo que ele chama de Plot Style (comumente chamado de Marvel Way).

Não há divisões de painéis ou informações mais detalhadas. Ele apenas indica a página e, em um parágrafo, dá todas as coordenadas ao desenhista, salpicando alguns trechos de diálogos aqui e acolá.

Os roteiros no estilo Marvel Way que eu já tinha lido até hoje eram mais sintéticos, e esse do Wolfman me lembrou mais o que alguns roteiristas de cinema americanos chamam de scriptment, que é uma mistura de roteiro (script) com argumento (treatment), cuja "criação" foi imputada ao diretor James Cameron.

De qualquer forma, as exigências no que diz respeito a um roteiro de quadrinhos são bem menores do que as de um roteiro de cinema, então, se a mensagem é bem passada, tá valendo (quase) tudo.

Aliás, nessas andanças, acabei descobrindo que Wolfman comercializa versões impressas dos seus roteiros.

Dwayne McDuffie - DEATHLOK 5

Vou confessar que estava até surpreso lendo um roteiro do McDuffie que não tocava em determinados assuntos, quando lá pela página 17 ele diz explicitamente ao desenhista (Denys Cowan) que gostaria de fazer um paralelo entre alguns personagens da hq (a saber, ciborgues e mutantes) com outras minorias. Aí pensei: "tá tudo bem agora".

Anyway...

O roteiro é antigo e em seu foreword McDuffie afirma que atualmente (leia-se: 2002, época da publicação do livro) escreve melhor e que na verdade gostaria de incluir o roteiro de ICON 42, que, segundo o próprio, estava publicado na seção de roteiros em seu site. Da última vez que passei por lá (tipo, dois minutos atrás), não tava mais.

Mas, por razões contratuais, ele só pôde ceder este, o que nos trás de volta ao Deathlok. McDuffie ainda observa que esse roteiro é o quarto e último capítulo de um arco, e o leitor não teria a mesma vantagem de Cowan, que teve 66 páginas para se adaptar ao "McDuffiês" até chegar a essa altura do campeonato. Particularmente, não vi nada demais.

Além da obsessão de McDuffie por grifar palavras e trechos dos diálogos (para que sejam destacados pelos letristas), não há muita pirotecnia no texto, que segue uma formatação proto-hollywoodiana.

Fiquei curioso pra ler esse material, mas a história em si é bem paia.

Jeff Smith - ROSE 1

Até já ouvi falar de quadrinistas* que passam pelo processo de redigir um roteiro, no sentido clássico, antes de botar a mão no lápis.

Mas, no caso desses caras, parar para escrever um roteiro costuma ser perda de tempo. A história geralmente brota de um amontoado de notas e desenhos esparsos, que já vão tomando forma em páginas "rafeadas" com indicações de diálogos. O processo é mais orgânico, obviamente pelo fato das partes mais importantes do mesmo dependerem de apenas uma cabeça.

E, Jeff Smith, criador de Bone, não é exceção.

Sua contribuição para o livro são 30 páginas rafeadas (esboçadas para você, ó, herege) com indicações de diálogos e tudo mais.

Mas os rafes não eram para consumo próprio e sim para Charles Vess, figurinha tarimbada no mundo dos quadrinhos.

Não li ROSE, e me bateu uma curiosidade para saber como ficou o resultado final. Embora um esboço dê uma ideia legal de como vai ficar a página, os estilos dos dois são muitos diferentes.

*Profissional Completo: desenhistas que também escrevem, ou roteiristas que também desenham, você escolhe.

Trina Robbins - GOGIRL 3

Esse roteiro da Trina Robbins chama a atenção porque parece ter sido escrito no corpo da mensagem de um email. Inclusive, é reproduzido com os campos de Subjetc, Date, From e To, característicos das nossas boas e velhas mensagens de correio eletrônico.

Já ouvi falar disso. Gente que escrevia verdadeiras epopeias no Outlook (e agora no Gmail). Mas não fica claro se ela escreveu assim, ou se abriu o editor/processador de textos, copiou e colou tudo no email.

Trina também é detalhista e passa bastante tempo criando a ambientação da cena, mas seu texto não é enfadonho.

Mas isso não foi suficiente para despertar minha curiosidade pela GoGirl.

Kurt Busiek - ASTRO CITY 1/2

Uma das coisas que me chamou a atenção nesse segmento do livro foi a uma observação que Busiek faz em seu texto introdutório sobre algo que ainda não tinha me dado conta, pelo menos conscientemente.

Ele fala que, para escrever seus roteiros, tomou emprestada uma técnica utilizada por Frank Miller. Em vez de escrever uma descrição completa e linear do painel/página, ele descreve antes o que estará em primeiro plano, ou seja, o que será imediatamente visto pelo leitor. Depois dá os detalhes restantes. Embora isso polua o roteiro com "CLOSEs", "ONs", "WE SEEs" e outras indicações, fez sentido para mim.

Busiek faz algo que fiz durante muito tempo (e hoje não faço mais): coloca um pequeno glossário na primeira página do roteiro.

Baseado neste e num outro roteiro que já li, acho que ele exagera um pouco nas indicações ao letrista. ISSO PRA NÃO FALAR QUE TAMBÉM ESCREVE AS DESCRIÇÕES DE PAINEL EM MAIÚSCULAS! #porrabusiek!

Nunca fui muito fã de ASTRO CITY, mas já li essa hq e me lembro de ter gostado, porque  Busiek subverteu em um clichezão das histórias de super-heróis.

Greg Rucka - WHITEOUT:MELT 1

Caras que vieram da prosa para os quadrinhos - como é o caso de Rucka - costumam pesar a mão nos diálogos e descrições, demorando um pouco a sacar o ritmo da escrita de quadrinhos. Alguns nunca sacam, aliás.

Mas esse não é o caso dele. Se não estou enganado, WHITEOUT:MELT (continuação de WHITEOUT) foi um dos seus primeiros quadrinhos publicados, e aqui seu estilo já está bem telegráfico, seco mesmo.

Uma coisa que notei nesse roteiro é que Rucka *sempre* grafa os nomes dos personagens em maiúsculas, destacando-os do restante do texto. Gostei disso e talvez me apodere desse truque.

Ele utiliza algumas siglas estranhas (FG, BG, EBG e CU[hihihi...]), que, se presumi bem, devem significar Foreground, Background, E-?-background e Close-up.

Há também umas notas finais (endnotes). Assim como Gertler, acho que também nunca vi um roteiro com isso. E também não li WHITEOUT.

Nat Gertler - DEGENERATION (publicada em Fol 8)

Nat Gertler, editor do livro, deixou sua aparição para o final. Malandrão.

Nesse caso, também há a hq que se originou do roteiro, desenhada por Steve Lieber. E como pude ler e como pude ler um após o outro, na sequência, acho que vou dar meus 0,02R$ sobre a história.

DEGENERATION foi publicada na Fol, uma revista literária turca(!), dirigida a um público mais, hmmm..., sofisticado. Se entendi bem, sua confecção é semi-artesanal e o formato é pra lá de gigante.

Os autores fizeram a história, o editor da revista traduziu o texto para o turco e devolveu-o a Lieber, que fez o letreiramento em um idioma que desconhece totalmente. No início do roteiro Gertler já avisa que estava numa vibe meio "Alanmooreana", então solta o verbo pra cima do pobre Steve (e de nós, pobre leitores).

Gertler ficou preocupado demais com o público, bem... sofisticado da revista, então decidiu que seria melhor não distinguir os papéis dos dois artistas nos créditos da história, para não passar a impressão de produção mecanizada/industrial/artificial/yankee/colonizadora/grandesatanizadora.

Lieber segue as indicações à risca, Gertler tem algumas idéias interessantes em relação à concepção visual de duas páginas, o título é mais alusivo do que aparenta e os parafusos foram todos bem apertados, mas Degeneration não é uma história que vai ficar gravada na sua cabeça.

Quanto ao roteiro propriamente dito, Gertler usa uma formatação esquisita para seus recordatórios (essa hq não tem diálogos), com fontes diferentes do restante do texto, inclusive no tamanho. Isso me incomodou um pouco.

Kevin Smith - Jay and Silent Bob: Walt Flanagan's Dog  (publicada em Oni Double Feature 1)

É assim: dos filmes eu só assisti Jay and Silent Bob Strike Back. Dos quadrinhos, li alguma coisa de Clerks, o run com Quesada no título do Demolidor e algumas edições do Arqueiro Verde. Da fase do Demolidor eu até gostei, mas até hoje não entendi todo o hype em cima desse cara. Mas pode até ser que eu não tenha experimentado a parte boa da torta.

Esse foi o primeiro roteiro publicado por Smith, e seu texto já tem uma pegada cinematográfica. Smith é econômico (como Rucka), e os diálogos dos seus personagens costumam ocupar mais espaço do que as descrições dos painéis.

Além disso, suas raízes cinematográficas ficam claras quando ele coloca cabeçalhos de cena (INT. CASA DA MÃE JOANA - DIA) para estabelecer o cenário. Já fiz isso no passado e hoje não faço mais. Mas o recurso pode ajudar, dependendo do caso.

*****

Pra quem realmente se interessa pelo assunto o livro é um prato cheio, e serve para confirmar uma coisa: não há jeito certo ou errado de se escrever um roteiro para uma história em quadrinhos. Há sim o jeito claro e o confuso. E o último, acredite você, tem que ser evitado a todo custo.

Ah!, antes que eu me esqueça: se alguém lhe disser que os profissionais escrevem assim ou assado, pode rir na cara dele. E diga que fui eu quem mandou.

PANEL ONE tem uma continuação, PANEL TWO: More Comic Book Scripts by Top Writers. A única diferença digna de nota em relação a seu irmão mais velho é que, dessa vez, os desenhistas também tem a palavra. E há o argumento do Judd Winick. Mas isso é conversa pra outra ocasião.

5 comentários:

  1. O livro parece interessante. E MARCIO, também destaco os persoangens em maiúsculas. Aprendi isso num curso de roteiro para cinema. :)

    ResponderExcluir
  2. Então ZÉ (hehehe...), acabei sendo vencido pela curiosidade e dei uma olhada rápida num roteiro que cê mandou pra lista uns tempos atrás (INTERLÚDIO). Realmente você e o Rucka partilham a mesma técnica.

    Mas, se bem me lembro, no cinema a recomendação é grafar os nomes dos personagens em maiúsculas apenas na primeira vez em que eles aparecem no roteiro, justamente praquilo servir como referência visual pro leitor.

    De qualquer maneira, estamos falando de quadrinhos, e nos quadrinhos vale o que vier, vale o que quiser. Só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher! (pensando bem, vale sim) :)))

    Valeu por ter lido.

    ResponderExcluir
  3. Eu gosto muito dos diálogos intermináveis de O Balconista, Procura-se Amy e até Dogma, que são os melhores filmes do Kevin Smith, que desde seu Clerks 2, não anda entregando nada de muito bom. E também gostei do Demolidor com o Quesada e aquele Arqueiro Verde, mas ele teve a cara-dura de esperar três anos pra terminar uma série onde estuprou a Gata-Negra (e ficou uma merda), e seu recente Batman Cacofonia, nem é tão ruim, mas preferi baixar que comprar.
    Não gosto do Rucka, mas é porque não curto o jeito dele com heróis (embora até goste do que ele faz com policiais), mas é a mesma coisa que tenho com Brian Azzarello, que é meio irregular, mas pouco tenho o que reclamar (assim como o Chuck Dixon da época em que escrevia Batman junto com o Alan Grant e Doug Moench, que eram bem bons naquilo). De qualquer forma, também gostei dessa coisa de escrever o nome dos personagens em maiusculas, e até acho que deveria começar a escrever os diálogos e quadros de texto em caixa alta, também... Tem um ano já que não escrevo roteiros de quadrinhos. O último foi aquela sinfonia infernal dos Pássaros Artificiais, que o Antonio ainda está tracejando, e estamos longe de terminar.

    ResponderExcluir
  4. Thank you for the kind words on the book. I'm glad that it was such a useful influence for you. It sounds like you got a lot out of it.

    ResponderExcluir
  5. Yes, Mr. Gertler, I really enjoyed the idea of the book (and I even tried to do something like that).

    In Brazil we don't have a comic industry like yours (in fact, we don't have any comic industry) and, excepting few heroes who dare write about the mechanics of comic writing, the offer of reference materials inexist here.

    Congrats for this book (and for his young brother, PANEL TWO) :)

    ResponderExcluir