quarta-feira, 2 de agosto de 2006

BIZANGO - CAPÍTULO 4: NEM DOEU


Márcio Massula Jr.

Que Francisco se lembrasse, tinha ficado em estado de choque apenas uma vez, logo na infância, ao ter um pedaço do dedão arrancado por errar um chute quando jogava futebol descalço na rua onde morava. Não foi propriamente a dor, mas o sangue. O espaço delimitado como o campinho tinha marcas de sangue por toda parte, uma versão macabra daquelas marcações estratégicas que os técnicos faziam antigamente para orientar os jogadores.

Dessa vez não havia sangue.

Existia um buraco no meio das suas pernas, e o que costuma ocupar o lugar estava em sua mão esquerda, subvertendo a ordem natural das coisas. De qualquer uma delas. Era engraçado ter a piroca na mão, mas fora do lugar. Entre todas as associações feitas por sua mente no momento, consolo foi a que quase lhe arrancou um sorriso. Quase. Uma pessoa, um homem melhor dizendo, não deveria achar nenhuma graça numa situação desta. Devia sim ligar para o resgate (ou bombeiros, ou polícia, ou o que fosse) e rezar para que chegassem a tempo de salvá-lo antes que morresse de hemorragia. Mas era aí que morava o problema. Não havia sangue.

Francisco tocava-se, apalpando o cotoco que restara em sua virilha. Era possível ver, na medida do possível, seus corpos cavernosos, sua uretra, suas artérias e todos aqueles outros tubinhos que até pouco tempo atrás iam dar em algum lugar próximo à sua glande. Não havia sangue. A carne era de um vermelho escuro, plúmbeo, como se tivesse acabado de sair das mãos de um açougueiro.

Ele não conseguia se decidir. A parte racional de sua mente mandava que ligasse para algum dos números de emergência estampados na primeira página do catálogo telefônico, mas apenas cogitar todas as explicações que teria que dar sobre o que ocorrera antes do sinistro já era constrangedor demais. Dirigir-se a um hospital também não melhoraria muito a situação.

- Veja doutor, tive um pequeno contratempo, um pequeno acidente doméstico, se é que podemos dizer assim, mas segui todos os procedimentos e trouxe devidamente conservada a causa do problema.

O doutor abre o embrulho, examina o conteúdo, e extremamente clínico diz:

- Oh! Não tema, Sr. Francisco. O senhor veio até nós em tempo hábil. Acho que podemos fazer alguma coisa e vai ser questão de meses, poucos anos no máximo, até que as coisas voltem a ser como eram antes, me entende?

Não, definitivamente, não. Mas seu camarada de poucas e boas não poderia ficar ao relento.

Fracisco lembrou-se de vários casos que vira na televisão, onde vítimas de acidentes que resultaram em amputação conseguiram que o reimplante fosse feito por terem tomado alguns cuidados com as partes seccionadas, como, por exemplo, acondicioná-las em saquinhos com gelo. Ele foi à cozinha, abriu a geladeira, tirou a fôrma de gelo, pegou um saco plástico - tudo sem soltar o falo - e quando tentou iniciar os preparativos para a criogenia do próprio bigolin, constatou que teriam que se separar. Aquilo lhe provocou certa angústia, um aperto no coração, como se o fato de deixá-lo ali, à revelia em cima da pia de mármore barato, fosse de alguma maneira decretar o fim do relacionamento que já durava havia quase uma vida. Titubeou, mas vendo que não tinha alternativa, deixou o instrumento em cima da pia e pôs-se a trabalhar. Enquanto enchia o saco com gelo, pensava em todas aquelas pessoas que pagavam fortunas para que seus corpos fossem partidos em pedaços e congelados, na esperança de serem revividos num futuro melhor. Seria aquele o destino dele? Seria seu pinto o legado que deixaria para a humanidade?

Francisco percebeu que estava com fome, e não pôde deixar de notar a semelhança do próprio órgão com uma salsicha. Uma salsicha das mais esquisitas, como aquelas alemãs, é bem verdade, mas ainda sim uma salsicha. Ele pegou o antigo anexo e começou a apalpá-lo, aproximou-o do nariz e inspirou profundamente aquele aroma, que seu cérebro decodificou como bastante agradável. Suas papilas gustativas imploraram em coro para que ele tirasse um naco daquilo com os dentes, e para dar o toque final, sua boca fez o favor de encher-se de saliva, como num daqueles belos comerciais de produtos alimentícios.

Foi só quando seus dentes tocaram na carne fria é que Francisco se deu conta do que estava fazendo. A manhã já tinha sido estranha demais, e não precisava terminar sendo coroada com uma atitude daquelas. 

Ele lançou o moribundo dentro do saco plástico, lacrou-o e colocou o embrulho no congelador, a partir de agora um esquife doméstico. Francisco precisava se acalmar e aquele não era o melhor momento para tomar uma decisão relativa ao antigo companheiro. Aparentemente a separação dos dois não tinha apresentado nenhuma consequência funesta, como era de se esperar, e aquilo teve um efeito extremamente libertador sobre ele. O que tinha esperado até agora poderia esperar até mais tarde. Havia a reunião, havia pessoas esperando por ele e havia uma revolução a ser feita. Ele tinha que ir.

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