sábado, 1 de novembro de 2008

MIDRAXE

Era mais uma daquelas tardes monótonas de terça. Meu aparelho de ar-condicionado urrava pedindo clemência, mas o calor senegalesco tornava-me um verdadeiro tirano com as utilidades do lar.

Embora, claro, eu não estivesse em meu lar.

Passava a maior parte do dia (e às vezes a noite também) ali, mas aquele escritório, de maneira nenhuma, poderia ser chamado de lar.

Ou poderia?

Meu escritório nunca foi muito agitado. Sempre tive uma clientela fixa, que compensava seu tamanho reduzido com uma grande fidelidade.

E pagava bem.

Eu conhecia meus clientes pelos nomes. Não fazia a mínima idéia sobre a idoneidade desses nomes, e nunca tive muito interesse em investigá-los. Outros do meu ramo costumam fazer isso, mas eu não. O simples fato das pessoas perderem alguns minutos elaborando um nome falso me deixava feliz. Queria dizer que elas achavam que eu merecia um pouco de respeito. Só um pouco, acho.

Então, alguém bateu à porta, interrompendo minhas divagações.

Eu detesto ser interrompido.

Mesmo assim, fui atender.

*****

Sim, era verdade.

*****

Ele era velho. Bem velho. Por volta dos 70 e poucos. Eu nunca gostei de velhos, e a idéia de necessitar da boa-vontade de alguém para limpar a bunda me assombrava. Com sorte, vou antes dos 50. Ficou ali, parado, me encarando, tentando esboçar um sorriso, ser simpático. Tinha batido na porta certa?

- Pois não?

- Senhor Romano, presumo. – disse, estendendo a mão enrugada pra mim. Não pude deixar de notar o anel. Um grande anel prateado com um emblema que não consegui enxergar direito naquele momento. Devia ser um maçom ou algo assim.

- Eu mesmo. Como me encontrou? – não retribuí a cortesia. Ainda não era hora. Tinha que interpretar meu papel.

- O senhor me foi indicado. Por esta pessoa. O senhor deve saber de quem se trata. – com a mesma mão que estivera estendida a mim poucos segundos antes, ele pegou um pedaço de papel no bolso do terno. Um cartão. Muito bem cuidado. Caríssimo. Eu teria que trabalhar muito pra ter um daqueles. Não gostei do sarcasmo. Mas dinheiro é dinheiro, sabem como é. E eu conhecia o nome. Sendo verdadeiro ou não.

- Conheço sim. Tenha a bondade. – saí do caminho, deixando o velho entrar em minha sala.
Modéstia à parte, eu cuidava bem do meu ambiente de trabalho. Uma sala simples, discreta, num prédio conhecido, mas não muito frequentado. Agora era minha vez de fingir simpatia. Estendi a mão.

- Peço que o senhor me desculpe pelos modos pouco amistosos, mas sabe como é. Nesse ramo nós fazemos muitas inimizades. Temos que nos precaver. Sente-se, por favor.
Ele sentou-se, ereto, na cadeira semi-nova que eu mantinha em frente à minha mesa. Quase todos os meus negócios eram tratados fora do escritório. Na verdade eu mantinha minha “agência” mais por capricho do que por necessidade.

- O senhor nos foi muito bem recomendado, senhor Romano, e...

- Pode me chamar apenas de Romano, por favor. – sempre interrompa os clientes. Isso lhes tira a sensação de poder. Intimida. Além de fazer você parecer mais esperto. No fundo eles gostam disso. Pensam que será um dinheiro bem investido. O que, no meu caso, não passa da mais pura e simples verdade.

- Ah, sim. Pois não, Romano. Como ia dizendo, o senho..., aham...desculpe,  foi muito bem recomendado. Por isso mesmo vou direto ao ponto.

- Que seria?

- Diga-me, o senhor costuma acessar muito a internet?

- Ocasionalmente. Uso para fazer pesquisas e me considero entendido, mas nunca fui um entusiasta. Sou um dos que trabalha à moda antiga.

- Claro, claro. Como eu. – riu, talvez imaginando que eu tivesse entendido a piadinha implícita em sua observação. Eu entendi. Mas fingi não entender. Não gosto de velhos, já disse.

- Bem, mesmo sendo um usuário eventual é provável que já tenha ouvido falar disso aqui. – e sacou da sua valise um livreto, cuidadosamente encadernado, com pouco mais de 40 páginas. A capa trazia impressa, em letras garrafais, apenas uma exclamação: MUDE!

Folheei desinteressadamente o documento. Pelos tópicos, presumi que se tratasse de algo na linha de auto-ajuda. Nunca gostei desse tipo de literatura. Pelo menos não publicamente. Coloquei a apostila sobre minha mesa, na esperança de que ele me desse ou esquecesse ali. Fiquei curioso pra saber o que tinha dentro.

- Conhece?

- É a primeira vez que vejo. O que é? Um livro de auto-ajuda?

- Sim, poderíamos dizer que sim. Esse documento tem sido distribuído pela internet gratuitamente há cerca de cinco semanas. O site original foi tirado do ar, mas algumas centenas de pessoas já tinham copiado e lido, e surgiram várias páginas disponibilizando esse arquivo. O resto foi efeito dominó. Mais pessoas liam, copiavam e disponibilizavam, o que tornou virtualmente (e esboçou um pequeno sorriso imaginando que talvez eu atentasse para esse trocadilho horrendo) impossível a eliminação disso in loco. Ontem saiu o segundo capítulo. Ao que parece, serão cinco.

- E?

- Já tivemos notícias de que o texto foi traduzido para o inglês, espanhol, alemão, italiano, francês, chinês e árabe. E incrivelmente, parecem não existir incorreções ou modificações sobre o original. Ninguém ousou alterar seu conteúdo.

*****

Eu só queria saber onde estava me metendo. Ele não suava, não tremia, não aparentava medo ou intimidação alguma. Só me olhava, com aqueles grandes olhos negros.

*****

- Mas o que tem esse texto de tão especial?

- O senhor deve ser um homem extremamente reservado, estou certo? Não deve gostar muito de televisão, não é?

- Não gosto mesmo. Mas leio meu jornal todas as manhãs, se quer saber. – velho irritante.

- Já ouviu falar dos Renascidos? Da Igreja dos Recém-desvelados? Desde que esse manifesto foi publicado, catalogamos aproximadamente 86 novas religiões e seitas. Ah!, me esqueci dos Acólitos do Pdf. Isso pra não falar das micro-repúblicas...

- E esse manifesto tem algo a ver com essa história toda, estou certo?

- Certíssimo! – ele disse. Eu não podia deixar de observar aquele imenso anel em seu dedo anular esquerdo. Consegui entender o que era o tal emblema. Uma cruz, sobreposta a outro símbolo que não consegui identificar. Evitei ficar olhando muito.

- Tá, mas onde eu entro nessa história toda?

- É muito simples, queremos que você encontre o autor desse texto.

*****

O velho tinha me dito para não ler. Mas eu li. Merda.

*****

Ao contrário dos meus colegas de profissão, minha experiência tinha parcas raízes acadêmicas, contrastando com o empirismo selvagem presente na esmagadora maioria dos meus conhecidos. Não cheguei a me formar, mas não escondo que alimentei a esperança de ver o meu nome estampado na capa de um livro. Eu era jovem, e tudo o que veio depois em minha vida, inclusive a “guinada” na escolha da minha futura carreira, só veio a comprovar o quão errado estava. De qualquer forma, eu trouxe comigo coisas boas daquele período. O hábito de pesquisar, por exemplo.

O autor do texto assinava como Y.H. E completava “um homem como todos”. Seu estilo era leve, simples. Nada de palavras rebuscadas nem de arabescos verbais. Nenhuma novidade, pra ser sincero. Nada que os livros de auto-ajuda já não viessem borrifando nas mentes das pessoas durante anos e anos. O que notei, que talvez fizesse a diferença, era a disposição dessas informações. Tudo parecia fácil e possível. O texto era quase uma obra de engenharia. Todas as palavras e idéias pareciam ter sido calculadas para surtir o efeito máximo. A mensagem era clara, objetiva, direta. E muito eficaz, pelo visto. Começou no país, se alastrando pelo mundo logo em seguida. O opúsculo, apenas um volume de uma obra maior, fora responsável pela mudança na vida de pessoas por todo o planeta. Executivos bem sucedidos simplesmente desligavam-se de suas empresas em busca de um maior conhecimento de “si próprios”. Programadores abandonavam seus códigos em troca do cultivo de alimentos hidropônicos em pequenos pedaços de terra nos rincões do país. Generais renunciavam à pátria e à farda para aproveitarem suas tardes compondo haiku. Operários deixavam as máquinas de lado e se dedicavam aos animais sem dono. A sociedade capitalista estava a três passos do colapso, embora ainda não tivesse se dado conta disso.

Funcionava mais rápido com alguns. Com outros, a transformação ocorria paulatinamente, mas ninguém ficava indiferente ao seu conteúdo. Ninguém.

Contudo, chegava a ser engraçado. A mídia e os governos encaravam a situação como um surto coletivo de excentricidade. Nada mais.

A questão agora era: como encontrar um homem sem rosto e sem nome? Isso, partindo do princípio que ele realmente existisse. Uma dupla de iniciais era algo muito vago para me basear, e em tempos de coletivos artísticos, a possibilidade de que aquilo pudesse ter sido escrito por mais de uma pessoa era muito grande. De qualquer maneira, alguém escreveu, e era meu trabalho encontrá-lo.

Embora a internet não fosse o lugar (se é que fosse um lugar) mais apropriado para encontrar informações precisas sobre algo, decidi começar por lá. Questão de comodidade. Cada vez que eu apontava meu buscador para alguma das combinações possíveis das palavras MUDE, Y.H., auto-ajuda e felicidade, o número de ocorrências aumentava. Exponencialmente. Na última vez que olhei, estava ultrapassando a casa dos milhões. Confesso que fiquei surpreso (medo seria a palavra certa, mas eu não diria assim de jeito nenhum. Tenho uma reputação a zelar, sabem como é). Ficava cada vez mais difícil separar o joio do trigo. Tudo o que estava acontecendo era um típico fenômeno do século 21. 

Informação espalhada à revelia, com penetração maciça. Mas aquela informação era diferente. Era capaz de quebrar convicções sedimentadas durante anos como se fossem gravetos.

*****

Não havia medo em seus olhos. Não havia rancor. Não havia desespero. Não havia confusão.

Só havia - e sei que parece engraçado dito assim – amor.

*****

A dificuldade em encontrar alguém é diretamente proporcional ao preço do serviço. Eu não contava com todo esse trabalho na hora de fazer meu orçamento. Obviamente, o velho teria que reavaliar os meus dividendos.

A procura pelo sujeito, depois de algumas horas em frente ao computador, mostrou-se infrutífera. Decidi que talvez fosse melhor começar devagar, comendo as beiradas, como diriam na minha terra. No país já havia dezenas de seitas, igrejas, grupos de estudos, fã-clubes e quejandos, fundadas em reverência a Y.H. A coisa ia do anarquismo homeopático da Igreja do Não-Trabalho - que pregava o ócio construtivo, através do uso extensivo de conexão, assim como provisões e demais recursos pagos pelos empregadores, na busca da iluminação pessoal - ao non-sense total dos Pequenos Schopenhauers. 

Nunca entendi quem realmente queria dominar o mundo. Separei alguns que me pareceram mais objetivos e iniciei minha busca.

*****

No seu pescoço há uma tatuagem de uma cobra mordendo o próprio rabo. Já vi isso em algum lugar, embora o significado exato não me ocorra agora.

*****

Infrutíferas, todas as tentativas. Sempre que perguntava sobre o autor daquelas palavras, eu via o abanar de apostilas e encadernações mal feitas do primeiro capítulo de MUDE! “Ele está aqui”, diziam alguns.
Passei duas semanas freqüentando os cultos escalafobéticos da Panspermia Metempsicótica para descobrir que o grande segredo revelado apenas aos iniciados – e nem precisei me tornar um deles - era a teoria de que todos somos esporos alienígenas que chegaram à Terra em um meteoro e desde então entraram num ciclo infinito de reencarnações que só será quebrado com a publicação do quinto volume de MUDE! Sem falar na tortuosa correspondência eletrônica que mantive com o fundador (e único membro, desconfio) do Reverso da Fortuna, um grupo de estudos que afirma que o real objetivo do livro era que as pessoas não mudassem. Enfim, loucura para todos os gostos.

Algo que notei em minhas investigações era a dissolução da idéia original, conforme o tempo ia passando. (Mas não é assim com todas as idéias?). No princípio todas as pessoas pareciam ter entendido a mensagem do livro de maneira relativamente parecida. Mas foi questão de semanas até que começassem a surgir dissidências e interpretações menos ortodoxas. Nem preciso dizer que isso só dificultou minha vida.

Meses se passaram sem que eu tivesse conseguido arranhar ao menos a superfície de toda aquela história. As pessoas, as lendas, os fatos, os boatos, tudo se multiplicava numa velocidade assustadora. Era como nadar em areia movediça. Sem saber nadar. Gastei uma pequena fortuna viajando a todos os cantos do país à cata de alguma informação, nome, dica ou o que fosse. Felizmente, meus empregadores eram pessoas de recursos, muitos recursos. Eu continuava minha busca movido pela inércia. Não fazia sentido. De qualquer maneira, o dinheiro continuava entrando em minha conta.
Em todo esse tempo, eu já havia me tornado um verdadeiro especialista no assunto. Cadastrei-me em várias listas de discussão, afiliei-me a várias congregações que aceitavam inscrições por correspondência, frequentei reuniões e cheguei mesmo a cogitar a criação de um site, blog (depois de todo esse tempo fiquei íntimo o suficiente da internet para me permitir tal façanha) ou algo semelhante sobre o assunto. Acho que isso criou algum tipo de imunidade à palavra. Quanto mais o tempo passava, mais ridícula eu achava aquela situação.

Até que um dia, a sorte sorriu pra mim.

*****

Ou não, dependendo do ponto de vista.

*****

Estava me barbeando quando o telefone tocou. Poucas pessoas tinham o meu número e eu não costumava receber ligações sociais. Atendi, a contragosto.

- Alô?

- Romano?

- Quem fala?

- Sou eu. Y.H. Aquele a quem procura.

Titubeei, não escondo. Meu cérebro funcionava à toda na tentativa de optar entre a descrença ou o crédito àquela identificação.

- Que história é essa? Não sei do que está falando.

- Sabe sim. Sabia que você é um péssimo mentiroso? A entonação em sua voz, o tempo que demorou para responder. A pausa entre as palavras...

O número já estava no meu identificador de chamadas. Era da cidade. Além de mim, apenas meu(s) empregador(es) sabia(m) do trabalho. Não poderia ser uma piada ou armadilha. Ou poderia? Paranóia é um pré-requisito nesse ramo.

- Acredite no que digo. Sei da história toda, do velho com anel esquisito e da sua busca fracassada. Creio que você deva ter um identificador de chamadas aí. Mas não se preocupe em encontrar o número. 
Vou lhe dar meu endereço atual. Fica mais fácil e assim acabamos com essa história de uma vez por todas. Ou, pelo menos, dessa vez.

Era uma voz melódica. De alguma maneira fazia com que eu me sentisse confuso. Tenso. Péssimo pra minha profissão.

Anotei o endereço. Era uma chácara na região metropolitana da cidade. Eu já conhecia o lugar. Um amigo também tinha uma chácara ali.

*****

Nunca me faltou tanta convicção quanto agora. E ele ali, apontando para as costelas...

*****

Marcamos para o outro dia, na hora do almoço.

Cheguei na chácara duas horas antes. Poderia, e provavelmente seria, uma armadilha. Porque, eu não saberia dizer. Da mesma maneira como eu não conseguiria responder com certeza porque eu estava ali. 

Era tudo muito óbvio, muito clichê, se querem saber. Parei o carro bem antes e segui os últimos quinhentos metros a pé. Estava me arriscando ao deixar o carro assim tão longe, mas toda aquela vegetação ajudaria no caso de uma fuga. Minha maior preocupação era toda aquela poeira em minha roupa. Fui beirando a estradinha de terra que levava até a casa. Quando cheguei ao portão, avaliei o terreno. Nenhum carro, nenhum cachorro, ninguém. Entrei devagar. Tirei a arma do coldre e deixei-a presa na minha cintura, na parte de trás da calça. O silêncio ali chegava a ser lúgubre. A casa em si era humilde. Nova, mas humilde. Uma varanda com uma rede pendurada, uma mesa e algumas cadeiras de jardim que há muito não deveriam ser usadas. Não havia rastros recentes de carros ou motos. Se houvesse alguém ali, teria que ter vindo a pé. Como eu. Uma piscina mal-feita ao lado da casa aparentava não ter sido limpa nos últimos meses. Mais próximo do lugar, eu reparei, a própria casa não recebia qualquer tipo de manutenção há tempos. Folhas secas criavam um tapete natural em frente à porta principal. O termo “natureza morta” me veio à mente. Contornei a casa em busca de uma entrada alternativa. Encontrei.

*****

Agora eu começava a compreender tudo. Talvez, a crença no livro - e apenas nele - fosse apenas um mecanismo de auto-defesa, de proteção. Num nível subconsciente, as pessoas deviam perceber a verdade. Mas descartavam-na. Era melhor. E não fazia diferença.

*****

O som das teclas era frenético. Ele digitava sem olhar para o teclado, era como se tivesse feito aquilo a vida toda. Só parava para ajustar os óculos que insistiam em escorregar para a ponta do nariz. Estava curvado sobre o velho monitor. Havia manchas de suor em sua camiseta desbotada, e seus pés estavam cruzados embaixo da cadeira. Relaxado. Concentrado. Não tinha percebido minha presença. E parecia inofensivo.

Entrei no pequeno quarto, com a arma em punho. Ele me viu, e não pareceu nem um pouco surpreso. Com certeza, esse não era meu estado de espírito.

- Ah! Você veio. Um pouco adiantado, não? – disse, enquanto consultava seu relógio de pulso barato.

- Só uma pergunta: você sabe quem eu sou? – a verdade é que não consegui pensar em nada melhor pra dizer.

- Espero que seja uma pergunta retórica – disse, dando uma piscadela. - Claro que sei quem é você. Eu te liguei, não liguei?

- Então, pela ordem natural das coisas, essa conversa não deveria estar acontecendo, não é verdade? Você deveria estar fugindo ou se escondendo.

- Hmmmm...faz sentido, faz sentido. Mas já devo lhe avisar (algo que seus empregadores não devem ter feito, certamente) que a ordem natural das coisas não seria o termo mais correto a se aplicar aqui.

- E por quê?

- Veja Romano... – ele se moveu na cadeira, cruzando as pernas como quem vai dar uma entrevista. Um pequeno movimento com minha arma foi claro o suficiente para ele entender que eu não gostava dos seus movimentos. Ele levantou as mãos, pedindo calma. Achei seguro continuar mantendo distância. - ...você sabe quem realmente está pagando o seu salário?

- Espero que seja uma pergunta retórica – eu disse, dando uma piscadela.

- Touché! Perguntas não são algo muito bem-vindo no seu ramo, acredito. De qualquer maneira, vou continuar meu raciocínio. A pessoa que lhe procurou usava um anel como esse? – e mostrou a mão esquerda, com um anel semelhante ao do velho.

- Tinha, e daí?

- Sabe o que significa esse símbolo?

- Não, e não quero saber. Nem sei o que estou fazendo aqui, conversando com você.

- Calma, calma! – disse, ainda com as mãos para cima.  – Precisamos conversar mais um pouco. Depois, você faz o que tem que fazer. Não vou fugir, me entreguei, lembra? Sei do meu destino. Mas talvez você não saiba do seu...

- ...

- Deixe eu lhe contar uma história. Tudo começou há muito tempo atrás. Sabe o que é midraxe?

- ...não..

- Esse termo – que acho maravilhoso, se me permite fazer esse aparte – vem do hebraico. É o nome que os teólogos deram a um artifício narrativo utilizado há muito tempo. Eles dizem que é uma narração de fundo histórico, ornamentada pelo autor sagrado para servir à instrução teológica. O autor conta o fato de modo a destacar o valor ou o significado religioso deste fato. Sua intenção não é a de um cronista, mas a de um catequista ou teólogo. Vi essa definição num site um dia desses. Embora seja deliciosa em seu cinismo, o termo também pode ser entendido como uma história baseada num modelo anterior. Um eufemismo para plágio, se assim preferir.

- E?

- Histórias superpostas sobre camadas de outras histórias, por sua vez superpostas sobre camadas de outras histórias. Qual terá sido a primeira mensagem? Qual terá sido a primeira informação? Isso não te lembra nada?

- Não.

O desgraçado era bom. Eu estava prestando atenção. Em cada palavra.

- Eu fui um garoto normal. Ao contrário de tudo o que disseram até hoje. Curioso, mas normal. A coisa toda descambou mesmo quando resolvi fazer uma viagem. Uma longa viagem. Está me acompanhando?

Preferi não responder, mas minha expressão era óbvia.

- Então, digamos que nessa viagem eu tenha aprendido alguns...truques. Mas o que eu considero ter sido realmente valioso foi um princípio. Um ideal. 

- Que seria?

- A implosão, embora esse termo não existisse na época, de um conceito. Simples.

- Que conceito?

- Autoridade.

- Como assim?

- Autoridade. Nunca gostei dela. Ninguém precisa disso.

- Amigo, pouco me importa o que você acha ou deixou de achar sobre esse assunto. Você sabe muito bem o que eu vim fazer aqui, não sabe?

- Sei. Claro. Mas o assunto te interessa sim. Se não você já teria puxado o gatilho. Deixe-me terminar minha história, está bem? Depois você faz o que veio fazer e nós dois ficamos felizes. Como eu estava dizendo antes de você me interromper, voltei do Oriente disposto a realizar aquilo que antes só passava pela minha cabeça. Banir totalmente o conceito. E que laboratório melhor para testar isso do que um território sob o julgo de um império estrangeiro? Mas aí a coisa toda tomou proporções inesperadas, e a mensagem se deturpou. É por isso que estou fazendo esse livro. Já tive muito tempo para estudar PNL, memética, e cá pra nós, a palavra impressa tende a se conservar mais do que a falada. Escreveram coisas que disseram que eu disse, e eu não disse. Agora eu mesmo digo o que quero através do que escrevo. Sem intermediários, sem atravessadores. Na verdade houve certa negligência da minha parte. Se eu tivesse me empenhado mais, as coisas não teriam tomado esse rumo, teria sido apenas um fenômeno localizado, de curta duração, uma curiosidade histórica, apenas isso. Só que fiquei curioso pra ver onde ia dar aquilo tudo, e simplesmente me afastei. Deixei rolar, como dizem.

- Mas se deturpou como? – eu já tinha me perdido na metade da sua história e não consegui pensar em nada melhor para dizer.

- Saulo.

- Quem?

- Saulo. Eles acreditaram que tinham me matado, mas eu, como já disse antes, dominava alguns truques 
e consegui enganá-los. Algum tempo depois, Saulo me viu – ele, ao contrário do que a história diz, presenciou minha suposta morte – e achou tratar-se de um milagre. E a confusão só aumentou quando ele conseguiu localizar meus antigos seguidores. Converteu-se à doutrina supostamente fundada por mim. Mudou de nome, inclusive, e tornou-se um dos maiores divulgadores dos meus “ideais”. Tentei abrir seus olhos e atentá-lo para o engano que cometia, mas já era tarde demais. Estava cego pela história que sua própria mente criou. Ele me tomou pelo demônio e fundou uma ordem, só para me caçar.

- Ordem?

- Sim. Hoje em dia não passa de uma agremiação de idosos excêntricos e abastados tentando conquistar algum tipo de respeito através de conhecimentos ocultos. – fez um gesto caricato, imitando um monstro, um bicho-papão. - Mas alguns ainda acreditam. E tem os registros. Costumam usar indefectíveis anéis de prata. Viu algum nos últimos dias?

- Então o velho...

- Sim, o velho. E eu também. “Mantenha seus inimigos por perto”. Conseguiram colocar as mãos em mim uma vez. Na idade média. Claro, consegui escapar. Do meu jeito. O engraçado é que, contei esse episódio a um escritor certa vez, quando estávamos presos em um gulag, assim, como se fosse uma piada, e isso acabou virando o trecho mais famoso de um dos seus livros mais famosos. Quase uma anedota.

Não entendi. Talvez ele tenha percebido. Talvez não. Fantasia demais. Ou, talvez não. O que poderia acontecer comigo se eu perguntasse?

- Peraí, se entendi bem, você afirma ser bem mais velho do que aparenta, certo?

- Certo.

- E estaria fugindo dessa ordem há quanto tempo, exatamente?

- Há longos dois mil anos...

- O quê? Tudo bem, você é escritor, mas não acha que está forçando a barra não?

- Bem, acreditar é um problema único e exclusivo seu. A palavra é: metempsicose. Também gosto dela. Sabe o que é?

- Você vai me contar de qualquer jeito, não é?

- É.

- Então vamos lá. Eu tenho tempo e sou curioso. E você realmente não vai me dar trabalho.

- Metempsicose, Romano, a perpetuação da alma em corpos diferentes. Ou melhor, a conservação da alma.

- ???

- Minha...alma...vem pulando de corpos todos esses anos...sim, é verdade. Existem complicadores. Nós conseguimos vagas, mas temos que nos contentar com o corpo que recebemos. Acredite, é difícil fazer qualquer tipo de protesto enquanto se está sendo polinizado por uma abelha ou perseguido por uma matilha de lobos. Antigamente era mais fácil, eu dominava algumas técnicas que prolongavam a...hmmm...vida útil de um corpo. Infelizmente a memória torna-se traiçoeira com a idade e temo que se tentasse algo do tipo hoje os efeitos seriam bem diferentes. Melhor ser uma roseira do que não ser nada. Mas até que dei sorte. No cômputo geral, consegui habitar um corpo humano um número satisfatório de vezes.

- ...

- O que significa que, mesmo crivando meu corpo com as balas dessa arma, dentro em breve você poderá ter notícias minhas. Ou não. Sei lá...estou cansado, de saco cheio. Preciso, sair de cena, de novas férias. Por isso te chamei.

- Muito interessante essa história toda, mas chega de conversa. Acho melhor você fazer suas preces, se é que me entende.

- Rá! Essa foi boa! Um minuto, sim?

Como se eu não estivesse ali, prestes a matá-lo, ele se vira e faz algo que me parece ser salvar o arquivo no qual estava trabalhando. Continua teclando mais alguns momentos e então me dou conta de que posso ter caído numa armadilha, de que ele está me confundindo para que eu seja surpreendido aqui. Mesmo com meu tiro explodindo o monitor em sua face, ele, ainda assim, parece não se surpreender. Lentamente coloca as mãos para o alto. Tinha uma cara de desapontamento, mas não a de alguém prestes a morrer. Parecia mais uma criança que foi obrigada a interromper uma brincadeira porque estava na hora de tomar banho.

- Certo, certo. Vamos lá então. Você podia pelo menos ter esperado eu terminar, né?

- Um último desejo?

Eu era um profissional, e não podia deixar a peteca cair. Tinha que mostrar que estava no controle, que ainda era capaz de uma simples ironia, que não ia me deixar levar pela conversa de um maluco. Mesmo prestes a apagar a única testemunha daquele breve momento de credulidade pelo qual passei.

- Sim. Os disquetes contendo as minhas anotações para os outros fascículos estão ali. Cuide bem deles.
Minhas mãos tremiam e eu suava como um porco. Ele girou a cadeira, ficando de frente para mim. Apontava o indicador esquerdo para as costelas, logo abaixo do coração. Pediu que eu atirasse ali. Força do hábito, disse. Dei um tiro no meio da testa. Só pra garantir.

Eu precisava sair dali rápido, mas minhas pernas tinham virado geléia, e só recobraram a consistência original quando eu olhei para os tais disquetes. Uma pilha deles, uns cinco ou seis, estavam numa outra mesa, repleta de livros e revistas, no canto oposto do aposento. Coloquei-os em meu bolso e parti. Queria dar uma olhada neles. Que mal poderia haver?

*****

Já faz dois dias que não durmo. Comi apenas o suficiente para não parar. Não posso sair. Tenho muito trabalho. Li todos os textos dele, várias vezes. Como pude ignorar aquilo? Como pude ficar alheio à Mensagem? Tremo só de pensar nas possibilidades, no que ele poderia ter feito. Nas várias faces do mundo que poderiam ter sido esculpidas por esse homem. As pessoas têm que saber. Preparei os textos e estou enviando a Palavra agora, ao maior número possível de pessoas. Fico me perguntando por que eu? Por que fui escolhido? Por que tive essa honra? E a resposta é sempre a mesma: eu fui escolhido porque estava lá. Só isso. O velho está atrás de mim e vai me encontrar a qualquer momento. Tenho muito trabalho. Tenho que espalhar as Boas Novas.

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MARCIO MASSULA JR. tem grande apreço por palavras estranhas das quais ele geralmente desconhece o significado. Mas isso não importa. O que importa é que os outros não saibam.

2 comentários:

  1. Muito bom, Márcio, me prendeu lendo! Parabéns!
    Irapuan

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  2. Administrator2:53 PM

    Valeu por ter lido, Irapuan!

    A propósito, bacanas as páginas de DEEP END que você postou lá no seu blog.

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