domingo, 2 de julho de 2006

O DRIVER DE PANDORA

Marcio Massula Jr.

- Então Sr... – o homem apertou os olhos, aproximando a folha do rosto. Certamente não enxergava direito, embora não usasse óculos - ...Gilberto. É isso mesmo?

- Sim, senhor. Gilberto – Limitou-se a responder o rapaz.

A sala era decorada num estilo clean, toda branca, com apenas duas cadeiras, uma mesa, um computador - do qual eram visíveis apenas o teclado e o monitor - e vários armários, todos também imaculadamente brancos. Gilberto pensou que talvez fosse para combinar com a roupa do Sr. Prudente, o entrevistador. Porém, o que chamava a atenção era a disposição da mobília naquela sala. Gilberto estava de costas para a imensa janela, que ocupava quase toda a extensão da parede, cuja vista abraçava a cidade até que ela se perdesse no horizonte. Até onde sabia, o usual era sentar-se de frente à porta. A mesa do Sr. Prudente, contudo, ficava de frente para a janela. Ele devia apreciar muito aquela vista.

- Vejamos...doutorado em física aos 23 anos...especialização em mecânica quântica...impressionante. Realmente impressionante. Temos um gênio aqui, hã? Realmente impressionante... – Repetia Prudente, sem tirar os olhos do currículo. – Li seu artigo, Evitando a formação de pares aniônicos espúrios através de uma topologia computacional quântica repensada. Fascinante! Deve ter dado trabalho verter aquilo para o mandarim, não?

- Hã...acho que não fui eu quem escreveu isso...

- Como? Ah, sim! Me desculpe! Não sei onde estava com a cabeça. Nosso cronograma está me matando. Esse é outro garoto. Você é o menino dos sistemas heurístico-caóticos. Do blog, não é?

- Isso.

- Bem, Sr. Gilberto. Algum problema se eu chamá-lo apenas de Gilberto? Não? Ótimo! Como sabe, nossa empresa atua no ramo de softwares técnicos e de segurança. E, de uns anos para cá temos enveredado pela internet. Mas você já deve saber disso, não é? Hoje em dia, sabe como é, a informação é a moeda mais valiosa do mundo. Na verdade ela tem o poder de mudar o mundo. E nós da APSE não podemos ficar de fora dessa corrida, concorda?

Gilberto balançou a cabeça afirmativamente.

- Daria pra ver esse sinal de interrogação estampado em sua testa do outro lado da rua. Estou fazendo todo esse rodeio pra chegar num ponto. Você! – O Sr. Prudente, como um Tio Sam decrépito, apontava o indicador inquisitorial para o rapaz e o murro que deu na mesa só deixou a situação mais espalhafatosa. – Você Gilberto! Você é a peça-chave nesse jogo! E nós queremos você do nosso lado!

O rapaz ficou meio assustado com o comportamento do hipotético patrão, mas aquela fugaz sessão de massagem em seu ego fez com que se acalmasse um pouco. Só um pouco. - Gilberto, meu querido, o quanto você entende de computadores? – Perguntou o velho, menos agitado, esfregando a palma de uma de suas mãos enrugadas nas costas da outra.

- Bastante – Gilberto sentia que estava pisando em terreno conhecido agora.

- Entenda Gil...posso te chamar de Gil? – Gilberto permitiu-se dar um pequeno sorriso. Se o presidente da empresa era assim, o que dizer do resto. Ele estava realmente gostando daquele lugar.

- Pode sim senhor – Gilberto havia abandonado a posição ereta inicial e já se acomodava confortavelmente na cadeira.

- Entenda Gil, que a pergunta que lhe fiz agora é totalmente retórica. É óbvio que conhecemos sua habilidade com os computadores. Você e mais quatro foram selecionados entre aproximadamente dez milhões de garotos. Sabe o que é isso? Você simplesmente deixou dois milhões de concorrentes para trás, ou melhor, um milhão, novecentos e noventa e nove mil, novecentos e noventa e nove para ser mais exato.

Gilberto sentiu-se tenso novamente, mas dessa vez era uma tensão diferente. Era boa. Ele não sabia a respeito do número de concorrentes. Optara por não tentar invadir os sistemas da APSE. Eles eram os melhores do mundo. Além disso, escolhera fazer os exames normalmente, sem saber as respostas com antecedência. Pensou que poderia ser bom um pouco de adrenalina no dia das provas.

- Diga-me, você chegou a instalar o software que lhe demos?

- Sim, claro. Interessante aquela interface gráfica – Gilberto já estava à vontade o suficiente para emitir um comentário com mais de três palavras. Preferiu não dizer nada sobre o vírus que encontrou no cd.

- E o que você sabe sobre mim ou sobre a APSE, Gil?

Além de ser um investidor que surgiu do nada cinco anos atrás para se tornar dono de uma das maiores desenvolvedoras de programas para aplicações científicas, militares e industriais? Nada.

- Sei o que foi publicado na internet e passou na televisão.

- Ótimo! Ótimo! Tudo bem, eles não tem consciência do real propósito da APSE, mas não costumam se distanciar muito da verdade. Gil, você acredita em Deus?

Empresas modernas costumam levar em conta outros atributos dos seus potenciais funcionários. À primeira vista, a crença em Deus não tinha muito a ver com o desenvolvimento de programas para computador. Partindo desse princípio, Gilberto tomou fôlego e se preparou para a saraivada de perguntas sem nexo que estariam vindo na esteira desta. Talvez “qual é o seu prato predileto?”, ou então “já conheceu pessoalmente alguém com complexo de Édipo?”, ou ainda “em que posição costuma dormir durante os fins de semana?”, além da indefectível “por que você seria a melhor escolha para esse cargo?”. A grande maioria das pessoas não tinha uma resposta concreta para a última. Mas era um preço barato a se pagar por um emprego daqueles.

- Acredito...mais ou menos. Bem, acredito em Deus mas...é que...

- Tudo bem garoto – Atalhou o velho. – Creio que entendi seu ponto de vista. E no apocalipse, Gil, no fim do mundo, você acredita?

Gilberto sorriu, mais por estar certo quanto às perguntas vindouras do que por simpatia.

- Sei lá...vai acabar um dia não vai?

- Ah, sim, vai acabar, claro. Mas temo que seja bem antes do que você imagina – Disse o velho, arregalando os olhos, deixando sua testa ainda mais enrugada do que o normal. Continuou olhando para o jovem, esperando alguma reação ou palavra. Gilberto não disse nada, limitando-se a vasculhar a sala com os olhos, procurando um bom motivo para não encarar o velho. Os alarmes começaram a disparar em algum lugar do seu cérebro.

- Rá, vocês humanos! Sempre tão céticos e cobertos de razão. Basta que sejam ditas algumas palavras com um pouco de firmeza e pronto, lá se vão todas as convicções que vocês têm a respeito da vida e do mundo – O Sr. Prudente dizia aquilo mais para si mesmo do que para Gilberto, que aproveitou a pausa e perguntou, tímido:

- Desculpe Seu Prudente, mas o que isso tem a ver com meu emprego?

- Oh, mas tem tudo a ver com seu emprego meu caro. Tudo a ver... – Interrompeu sua frase com uma careta, levando a mão ao abdômen. – Desculpe, é meu fígado. Sempre tive problemas com ele.
Gilberto então atribuiu a quantidade excessiva de rugas no rosto e vasos sanguíneos rompidos próximos ao nariz não só à idade, mas também ao álcool. Teve vontade de rir com sua conclusão, mas conseguiu ficar sério.

- Já ouviu falar de algoritmos genéticos? Sistemas emergentes/imunológicos? Redes neurais? Reconhecimento de Padrões? – Perguntou o entrevistador, já recobrado do repentino surto.
Programas evolutivos, que se “melhoram” sozinhos a cada nova geração. Sistemas que decidem suas “metas” sem que essas sejam pré-estabelecidas. Malhas binárias que emulam o funcionamento do cérebro humano. Os alicerces para a criação da inteligência artificial. Ferramentas para que criação de programas avançados. Programas que dariam um nível de flexibilidade inimaginável a robôs industriais, por exemplo. Programas que poderiam fazer simulações com precisão quase total sobre o comportamento de sistemas como a bolsa de valores, variações climáticas ou mesmo o humor das mulheres com TPM. Programas que poderiam se tornar supervírus semi-inteligentes e altamente reprodutivos. Gilberto conhecia um pouco desses assuntos. Chegou a utilizá-los, de maneira rudimentar, em algumas de suas obras.

- Já, já ouvi falar sim senhor.

- Então deve saber que são ferramentas, métodos, utilizados no desenvolvimento de IA?

- Hã...mas, até onde sei, os progressos nessa área ainda não condizem com as reais possibilidades oferecidas – Disparou, tentando impressionar o futuro chefe.

- Ah não! Já existem softwares desse tipo poderosíssimos. Como o vírus que você eliminou ontem do seu computador...

Gilberto retesou-se na cadeira. Como aquele velho sabia? Talvez fosse um blefe. Ou melhor, um teste. Isso, um teste. Eles queriam saber se estavam contratando um cara bom mesmo.

- Esse era o vírus primário. Existia um secundário... – Prosseguiu o Sr. Prudente.
“Deletei esse também”, pensou Gilberto

- ...que também foi deletado por você imagino. Obviamente, dois chamarizes. O programa continha um vírus terciário, que tinha a única função de nos informar sobre seus progressos quanto aos outros dois...

- ...

- E, por último, mas não menos importante, o quarto vírus, auto-replicante (vocês chamam isso de worm, certo?) que segundo minhas projeções, já deve ter infectado alguns milhões de computadores ao redor do mundo, espalhando-se como um câncer binário por toda a internet. Será questão de horas, ou dias no máximo, até que atinja o alvo principal...

– Hã...olha Seu Prudente....o senhor está dizendo que usou meu computador pra espalhar um vírus por todo o mundo, certo? Bem...não me leva a mal nem nada, por favor, mas acho difícil de acreditar nisso, sabe? Tenho tudo quanto é tipo de firewall e antivírus que o senhor pode imaginar. Alguns eu mesmo inventei. Se houvesse outros vírus eu...saberia.

- Será que não entende Gil? A simplicidade de tudo isso? Enquanto você estava ocupado se divertindo com os dois vírus que encontrou, os outros dois estavam fazendo seu trabalho, escondendo-se e multiplicando-se dentro de sua máquina, aguardando a hora exata para escapar. Além disso, existem pessoas que estão no seu nível. Ou estavam...
Era um teste, tinha que ser.

- Hmmm....tá bom. Suponhamos que esses dois escaparam mesmo. Qual seria o objetivo do vírus quatro, então?

O velho olhou para a mesa, por longos segundos. Tamborilava os dedos, produzindo um ruído harmônico, ligeiramente agradável. Depois, juntou as mãos em frente ao corpo, de modo que as pontas dos polegares ficassem opostas uma à outra. Ergueu os olhos, encarando Gilberto. Era a primeira vez nesses vinte e poucos minutos que seu rosto assumia um ar sisudo, quase sombrio.

- Deixe eu lhe contar uma versão bem resumida da história: certo dia, alguém teve a idéia de criar vocês, humanos.

Era a segunda vez em que ele dizia aquilo. Humanos.

- Então, as coisas começaram a ficar confusas. Vocês começaram a ficar rebeldes, se multiplicavam rapidamente e o Criador, uma pessoa de visão, se é que podemos dizer assim, percebeu que dentro em breve, as coisas sairiam do controle. É aí que nós entramos. Viemos para tentar colocar um pouco de ordem na casa, por assim dizer.

- Vocês? Hã...como assim?

Já era possível notar certa empolgação no tom de voz do Sr. Prudente.

- Bem, cada um de nós teve um nome diferente, dependendo da região e da época onde estávamos. Talvez você tenha ouvido um ou outro por aí. Mas o que importa é que sempre gostei de vocês. Sério mesmo. Se não fosse assim, não teria lhes dado o fogo (que me causou certo embaraço na ocasião, devo dizer) o segredo da escrita, a roda, a pólvora, a eletricidade, a fissão atômica, a internet e a pornografia. Como eu nunca cultivei o hábito de consultar meus associados, a bomba estourou em minhas mãos e aqui estamos nós. Agora eu tenho que dar um jeito no problema que em parte é responsabilidade minha.

- Hmmm...olha seu Prudente, não tô entendendo aonde o senhor quer chegar...

- Calma, calma – Disse o velho, com a mão espalmada apontada para Gilberto – Já estamos chegando lá. Lembra-se do que lhe disse sobre o fim do mundo? E se você soubesse que o início do fim (perdoe a expressão. É horrível, eu sei) deveria ser amanhã, às 5:17 da manhã, horário local? O vírus quatro, aquele que você não conseguiu localizar a tempo, a essa hora já deve ter entrado em pelo menos um dos computadores da força aérea americana. O objetivo é que dentro de poucas horas alguns silos nos cafundós do Kansas (ou em qualquer outro lugar) se abram e cuspam seus ICBMs. O resto será conseqüência.

- Mas...

- Vocês estão destruindo o planeta. Quanto tempo acha que o meio-ambiente agüentará até que a Terra imploda? Capitalismo, comunismo e qualquer outro “ismo” em que se possa pensar são totalmente inócuos. Não importa se as configurações sociais adotadas por vocês são assimétricas ou não, justas ou não. Você acha mesmo que separar o lixo em recipientes coloridos vai reverter a situação? O estrago foi feito, é grande e agora não há mais retorno. Melhor começarmos de novo. Sinto muito Gil. Vocês são uma praga. E têm que ser tratados como tal.

O desânimo causado pelos rumos que a conversa apontava fez com que o organismo de Gilberto intervisse e protestasse. Um desconforto muito forte tomou seu corpo de assalto. Seus intestinos pareciam ter sido desenrolados, examinados e amontoados sem o menor critério de volta dentro da cavidade abdominal.

- Olha, Seu Prudente, não que eu esteja duvidando do senhor nem nada, viu? Mas acho que é meio impossível acontecer isso aí que o senhor tá falando. Olha só, os computadores da força aérea americana são isolados fisicamente, justamente pra evitar situações como essa. Eu mesmo já tentei invadi-los uma vez. Como seu vírus vai chegar lá? – enquanto falava, Gilberto gesticulava bastante, criando uma barreira pantomímica entre ele e seu interlocutor.

- Ao contrário do que parece, existem computadores ligados em rede, sim. Na verdade um, numa base secreta naquele deserto americano. Nevada, acho. É um sistema novo e como a base ainda é segredo, os americanos descuidaram-se um pouco no quesito segurança. E se você imagina que o problema é esse, não nos esqueçamos dos paquistaneses, dos norte-coreanos, dos chineses ou mesmo dos russos. Basta que apenas um míssil acerte o local, Gil. Os outros começarão a voar automaticamente. Como dominós termonucleares – Finalizou Prudente, contraindo levemente o canto esquerdo da boca, esboçando um sorriso, provavelmente satisfeito com a própria analogia.

- E, hã, tipo assim, onde eu entro nisso tudo? Se o mundo acaba amanhã, pra que me dar o emprego?

- O criador do vírus original, por um descuido meu, veio a falecer em circunstâncias no mínimo... inusitadas. A condição inicial para disparar os vírus três e quatro era neutralizar os dois primeiros. Um capricho do antigo programador. Ele também era um gênio. E foi aí que você “entrou”. Precisávamos de alguém para quebrar o código. Contudo, ele deixou o trabalho incompleto. Como você deve saber, sistemas emergentes ainda têm uma margem muito grande de imprevisibilidade. Acredito que isso talvez atrase o cronograma. E existe uma possibilidade muito pequena de que as mutações atinjam um grau de complexidade tão grande que o vírus perca sua meta e acione algum aparelho de ar condicionado em vez de lançar os mísseis.

- Hã...tá. Tudo bem. Certo. Se vocês são tão poderosos assim, porque não fazem o trabalho vocês mesmos? – Disse Gilberto, tentando parecer sarcástico.

- Cláusulas contratuais. Não podemos interferir diretamente. Já disse, preciso de você.

- Olha Seu Prudente, sei lá, tipo assim, não tô duvidando do senhor não, tá? Só tô achando meio estranha essa história mesmo.

- Ora meu jovem! Estou lhe dando a oportunidade de abreviar as coisas. Pense rapaz: se tudo der certo, os mísseis voarão apenas do lado de cima do equador. Claro, vai haver toda aquela coisa da poeira e inverno nuclear, mas existe a possibilidade de que este país não seja tão afetado assim. Talvez torne-se mesmo um oásis. Você estará apenas garantindo um futuro para seus filhos e netos. Acredite, se o colapso acontecer depois, vai ser muito pior.

Gilberto levantou-se bruscamente, batendo o joelho na quina da mesa e derrubando, sem querer, um punhado bem gordo de memorandos que estava na borda da mesa, assim como a cadeira. Conteve-se ao soltar um “ai!” (que as más línguas diziam ser extremamente afeminado), sem saber ao certo se pressionava o joelho com as duas mãos, se pegava a cadeira, se reorganizava os papéis ou se desaparecia dali. Mas não queria mais encarar o Sr. Prudente. Optou pelos papéis. A despeito de qualquer critério, começou a juntar tudo em pequenas resmas, que depositava nas imediações da pilha original, rapidamente. Ainda juntando os papéis, começou a falar, o medo lhe imputando novamente a faculdade da eloquência.

- Olha seu Prudente, acabei de me lembrar. É que eu tenho uns compromissos para agora, sabe, e, pensando bem, acho que meu perfil não está assim tão de acordo com o que o senhor precisa. Eu tenho muito que aprender ainda, e, quem sabe daqui a alguns anos a gente não tenta de novo, hein?
Juntou a última resma, levantou-se e virou, dirigindo-se à porta a passos largos. Estancou quando o Sr. Prudente disse:

- Pense bem garoto! Está deixando uma oportunidade única para trás. Começar tudo de novo. E dessa vez do jeito certo.

Gilberto não se deu ao trabalho de responder. Dobrou à direita no corredor e desapareceu.

O Sr. Prudente não fez nada. Poderia fazer. Poderia, com apenas um pensamento, infligir todo o tipo de sofrimento àquele rapaz. Mas como dissera antes, gostava dos humanos. Ele não era vingativo ou rancoroso como seus companheiros. Além do mais, existiam ainda mais quatro programadores. Algum deles haveria de ser mais sensato.

FIM

2 comentários:

  1. "Diz muito sobre a natureza humana que a única forma de vida criada por nós é puramente destrutiva. Criamos vida à nossa imagem". - Stephen Hawking

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  2. Administrator7:37 PM

    Fechou.

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